Demônio: A Queda - Contos  

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O CEMITÉRIO
 

Antes de minha queda eu servi ao Demiurgo como um coveiro em um pequeno cemitério ao longo de um solitário trecho da estrada nos limites da cidade. Em todos esses anos eu apenas sepultei um cadáver humano. A suposta funerária que me empregou não possuía clientes. Não anunciava em nenhum lugar. As pesquisas da internet só retornavam resultados se você já soubesse o nome do cemitério.

Ele não me atribuiu a este cemitério para enterrar corpos. Ele me enviou para exumá-los, colocá-los no carro fúnebre, e entregá-los aos locais que requeriam corpos humanos com a carne ainda sobre os ossos. Cada cadáver que eu desenterrei estava tão fresco como se eu o fosse enterrar no início do dia. Alguns ramos de flores murchas ainda estavam entrelaçados em seus dedos. Os caixões mal tinha marcas de desgaste ou de uso.

Algumas noites eu cavava túmulos. Outras vezes eu cavava meia dúzia consecutivamente. A minha enxada tocou a terra todas as noites por quarenta anos, e eu nunca encontrei um túmulo vazio. Aos poucos, eu percebi que não fazia nenhum sentido. Todo o cemitério tinha talvez apenas cem túmulos. Ninguém enterrava quaisquer cadáveres novos, e eu ainda achava corpos frescos todas as noites.

Comecei então a ficar curioso. Eu desenterrava sete túmulos em noites seguidas, mas nunca havia um novo caixão. A lápide não era alterada. Parecia desgastada como sempre, mas cada caixão era diferente. Eu fui além, abrindo os caixões e examinando os restos de cada um. Toda noite eu desenterrava um corpo novo – uma velha que tinha morrido dormindo, um filho arrancado do mundo por um acidente horrível, uma jovem morta violentada, um homem de meia idade morto por um ataque do coração. Reconheci a marca da morte sobre eles.

Às vezes tomaram os bens pessoais dos mortos antes mesmo de eu entregar-lhes a seu destino final. Eu não creio que eu possa dizer-lhe o por que. Algo sobre estes tesouros enterrados que foram enterrados a horas ou dias após terem sido destinados a terra me fascina. Ao longo dos anos, eu adquiri uma grande coleção que eu escondi em meu escritório na casa funerária.
 
A questão de onde os cadáveres vieram nunca mais me ocorrera, até o dia em que eu fui o autor da exumação. Ela tinha longos cabelos castanhos, óculos finos e, provavelmente, seria difícil para um agente funerário esconder sua garganta cortada.
 
Eu já tinha a visto. Reconheci a face de uma velha enterrada anos antes, em um livro – um livro de memórias de família que eu tinha examinado assim como eu fiz com todos os pequenos prêmios que eu mantive em meu escritório. Pela primeira vez em minha missão eu reconheci alguém cujo corpo eu mesmo desenterrei. Eu não sabia quem ela era, mas eu sentia como se a conhecesse e senti vergonha diante da perspectiva de a entregar a outros agentes d`Ele.

Eu a enterrei sozinho novamente. A experiência me deixou traumatizado, com medo de que o Senhor pudesse reconhecer minha fraqueza. Não sei como o cemitério elege seus corpos ou como os colocam nos lotes do cemitério. Ele só chama aqueles que são recém-enterrados, com as bochechas de seus entes queridos ainda molhadas pelas lágrimas de tristeza. Seus mistérios não me intrigam mais. Eu li sobre o autor do livro, e sei que ele tem ou teve uma filha e que perdeu sua esposa.

Eu quero conhecê-lo e ler sua história também.


O CAÇADOR CAÇADO
 
 
Eu era um caçador de demônios. Quando um anjo ganhou auto-consciência e não relatou suas dúvidas ao seu criador por medo de eliminação, O Deus Máquina me enviava para capturá-lo. O Deus-Máquina não desperdiça seus preciosos recursos, e a criação de um novo anjo pode requerer um custo demasiadamente elevado para simplesmente eliminar um que seja funcional (ao ao menos reparável). Minha tarefa era trazer este rebelde para a relojoaria de Deus-Máquina através de qualquer meio necessário.

Esta não é uma tarefa fácil. Os demônios se misturam na sociedade mortal facilmente, de modo que muito possam evitar ser avistadas durante anos, ou mesmo décadas. Eles normalmente permanecem seguros de seu Criador porque o Deus-máquina somente convoca seus anjos caçadores quando eles podem identificar e capturar seus colegas corrompidos. Quando um demônio atraia atenção para si mesmo, de uma maneira ou de outra, o Deus-máquina o esperava movendo céus e terra para localizá-lo antes que ele pudesse desaparecer novamente.

Eu destruí os refúgios dos demônios e os perseguiu na terra e no mar, com implacabilidade única que os anjos podem ter. Eu interroguei seus companheiros humanos e tomei mortais como reféns, pensando que poderia forçar o renegado a retornar por eu ameaçar seus entes queridos. Alguns insensatamente pensaram em lutar comigo – talvez nao esperando me derrotar, mas sim me forçando a destruí-los além do simples reparo planejado. Eu os encontrava, capturava e os trazia de volta a câmara de reformulação de Deus-máquina para os desligar. Outros possuíam aliados para lutar em seu nome. Cultistas mortais, espíritos e feiticeiros – eu matei todos eles para chegar até a verdadeira presa.
 
Um punhado de demônios me levaram a uma perseguição, pois previram minha vinda e tomaram medidas. Tentaram me cercar com aliados armados e me desinformaram com pistas falsas tentando me levar para longe de seu caminho. Eles usaram eventualidades pré-programadas e exploraram interesses do Deus-máquina para manterem um perfil abaixo de minha busca. Alguns deles mudaram seus receptáculos e adotaram novas identidades tão rapidamente para que eu não conseguia penetrá-las. Eu não me envergonho de confessar que alguns escaparam de mim.

Nem todos os meus alvos lutaram ou fugiram de mim. Alguns até pareciam aliviados quando foram capturados. Outros me acolheram, mas tentaram me convencer a poupá-los do pagamento ao final de cada busca. Eu acho que eles esqueceram que eu era um anjo e que eu não poderia escolher entre obedecer ou desobedecer as ordens do Deus-máquina. Em quase todos os casos eu arremessei minha presa na fornalha purificadora para que fosse reformulados como anjos de Deus, o que haviam sido criados para ser. Lembro-me apenas de três exceções que Deus-máquina tomou.

As centenas de outros foram re-forjados em seus padrões pretendidos e prontos a servir o Deus-máquina novamente. Eles deveriam me agradecer se ainda possuíssem a capacidade da gratidão.

Essas três exceções mexeram comigo, no entanto. Os caçadores do Deus-máquina sempre dizem que os Libertos não podem ficar vagando livres por aí. Ele nos disse que os demônios sofreram pequenas falhas como computadores infectados com vírus que em última análise os corromperia. Precisávamos capturar os renegados antes que eles perdessem sua funcionalidade. Mas alguns foram soltos, libertos de volta ao mundo. E pensar neles me fez, eventualmente, Cair.

Se o Deus-máquina libera alguns demônios de volta ao mundo sem purificá-los, isso significa que o desacorrentado serviria a algum propósito em seus planos – nenhum dos seus anjos poderia impedir. E se todas as ações de seus anjos serviram aos planos de Deus-máquina, minha rebeldia também seria parte de seu plano. O meu livre-arbítrio pode ser ilusório, mas ao menos é uma ilusão que me da prazer. Se meu criador um dia decidir que minha liberdade não o serve mais, um de seus anjos caçadores virão me buscar para me reciclar.

Isso não significa que me tornarei um “trabalho fácil” para meus colegas. O que é mais evasivo do que uma presa que já foi o predador?

 
VERMES DE OUVIDO
 
 
Eu nunca mais escutei uma música gravada. Mesmo para um demônio, isto é um grande risco. Usado apenas pelas grandes gravadoras.Tenho visto muitos exemplos. Tenha cuidado especial com a música que pode não ser pensada como música – como músicas de tv e anúncios de rádio, trilhas sonoras de filmes. Estes tem mais mensagens escondidas nelas do que qualquer outra coisa.
 
Você sabe que estrelas pop não escrevem suas próprias músicas, certo? As gravadoras encontram jovens, cantores atraentes com timbres belos, os fazendo ler as músicas que irão cantar, e depois comercializando no mercado. Mas você já parou para pensar de onde vem a partitura ou como as empresas de mídia decidem quais bandas se tornam os queridinhos sensacionais das rádios e quais se tornam sucesso como um culto na internet?

Todo mundo quer culpar os executivos das grandes gravadoras, os anunciantes, ou os distribuidores de mídia, em suma, qualquer um que é na melhor das hipóteses o peão involuntário do verdadeiro culpado. Sim, todas essas pessoas são cúmplices, mas elas estão tentando ganhar dinhei-ro o suficiente para comprar sua sexta casa ou seu iate de corrida. Ou uma sexta casa que também é um iate de corrida. Os seres humanos são desgraçados gananciosos em seu coração, e eles vão ignorar praticamente qualquer irregularidade se isso significa fazer dinheiro.

Milhões de jovens sonham em ser estrelas da música pop. Uma certa porcentagem dos que tem o que é preciso, são aquelas que acertam um tiro em cem mil para serem pegos por uma gravadora. Mas quem escolhe o talento? Não são os executivos. Eles podem conhecer os negócios, mas eles são muito ocupados. Eles delegam esta tarefa a caçadores de talentos. Não são poucos os olheiros que assumem ordens do Criador. Eles procuram por cantores que se encaixem em certos critérios – Não só a juventude e a beleza, mas um timbre peculiar de voz que um de seus agentes concede a capacidade de compreender. Às vezes outras características são necessárias – a triste história de vida, uma peculiaridade genética rara, ou uma conexão oculta a algum princípio da física arcana da Criação.
 
Ao longo dos mesmos princípios, milhões de pessoas de todas as idades se imaginam letristas ou compositores. Muitos enviam músicas para as gravadoras, e alguém designa esta música a algum artista pop cantar. O Criador ajuda a escolher a música através de mediadores que procurem qualidades específicas – chave, medidor, tempo e assim por diante. Música da Criação, sabe?
 
Você pode ver onde isso vai dar. Em cada etapa do processo, o Criador e Seus servos cuidadosamente moldam o produto final. Eles tem como alvo o publico mortal. Eles determinam o grau da probabilidade da música ficar presa na mente dos ouvintes. Esses são os fatores que determinam o quão rápido eles vão subir nas paradas e em quanto tempo irão cair deles de novo.
 
Eles já descobriram tudo o que iriam implantar como mensagem subliminar – a verdadeira carga útil da música. Alguns alteram o estado emocional dos ouvintes, os incitando a tomar um curso específico de ação. Creio que a música é parte da razão para os mortais não conseguirem ver Deus. A mensagem subliminar cria uma espécie de ponto cego.
 
Outras músicas subliminares criam rituais se as músicas são reproduzidas em uma ordem específica e em uma determinada frequência de rádio em particular. Cada canção esconde uma única palavra ou frase de um longo encantamento. Eu criei um programa de computador que está aprendendo a prever atividade sobrenatural em minha cidade natal com base nas canções clássicas locais. Tal como acontece com todas os ritos ocultos, a ordem necessária difere por localização, mas espero que um dia os princípios subjacentes possam ter aplicações mais amplas.
 
Além disso, a criptografia do Senhor tem melhorado ao longo do tempo, por isso pode demorar até que eu consiga codificar as estações de rock clássico, muito menos qualquer coisa produzida na última década...


PROVAS INCRIMINATÓRIAS
 
 
Eu servi o Demiurgo em um pequeno escritório em uma grande sede política da cidade. Meus colegas de trabalho nunca perceberam que eu não tinha título oficial e ainda tinha um dos únicos escritórios em uma fazenda, com gabinetes de detetives da polícia. O que ninguém sabia, é que eu escrevia as descrições de cada elemento de provas e transcrevia declarações de testemunhas, digitando em uma antiga máquina de escrever elétrica e os colocando no processo.
 
Quaisquer evidências que eu escrevi nestes documentos se tornaram reais. Conforme eu escrevo, lembro nomes de testemunhas e acontecimentos. Até mesmo vou recordando relatos de suspeitos do crime. Vídeos e fotografias incriminadores aparecem na sala de provas exatamente como eu os descrevi. Facas ensanguentadas, cartuchos de bala, e até mesmo os corpos vítimas de assassinato – todos eles simplesmente se materializaram onde os procedimentos policiais diziam estar armazenados. Alguém da força se lembraria da recolha apesar de não terem feito tal coisa. O Demiurgo me deu um alvo e um crime, e era o meu trabalho fabricar evidencias suficientes para garantir o mandato de prisão de uma condenação criminal.

Eu fiquei bom nisso. Qualquer pessoa pode escrever um caso aberto, mas inventar uma trilha complexa de evidências sutis que lentamente leva ao autor do crime requer um gênio. Foi um ponto de orgulho eu poder tornar um detetive aleatório um herói de uma investigação simplesmente por ter escolhido cuidadosamente as provas que lhe deram o crédito de um excelente trabalho na polícia.
 
A máquina de escrever tem seus limites. Eu tinha que saber de um suspeito de nome legal, mesmo que minhas intenções nunca o referenciasse. Não poderia criar novas provas contra alguém que já estava sob custódia da polícia. Não poderia alterar memórias do suspeito – ele sempre sabe quando é inocente. Ele não podia realmente cometer um crime, então eu não poderia fazer um homem casado matar sua esposa. Eu poderia culpar um homem solteiro que foi preso por assassinar sua esposa, mas seria uma enorme dor de cabeça pois eu teria que reescrever a memória de muitas pessoas. Finalmente, ele só poderia gerar provas de um crime para o qual a pena máxima é encarceramento na jurisdição local. Admito que fiquei um pouco nervoso quando alguns políticos começaram a falar sobre restaurar a pena de morte no meu estado. Assaltos a banco são uma boa mudança de ritmo, mas nada tem a variedade ilimitada de mistérios de um assassinato.
 
Eu possuo uma fonte segura de que há um triturador de papel em outro quartel da polícia que faz o oposto. Alimentam as descrições das provas, e as evidências simplesmente desaparecem. Faltam as armas do assassinato, retratos de testemunhas, e substâncias ilícitas desaparecem.
 
Porque eu deixaria o serviço do Demiurgo? Não faço a menor ideia. Acho que conforme o tempo passou Ele esqueceu-se da velha máquina de escrever e atualizou para algum computador? Quando me dei por mim eu não tinha ordens a tempos, e um mundo todo para escrever.

 
ASSASSINO DO PLANETA
 
 
Minha última missão foi rastrear e matar todos os que se envolveram com um projeto enorme. Ele ascendeu a mais de uma centena de mortais e meia dúzia de entidades ocultas, que foram apenas as equipes mais convencionais a serem eliminadas se eu não conseguisse os pegar. Mas minha curiosidade é meu defeito. Ao invés de matar meus alvos imediatamente e sem hesitar para o destino que Ela planejou, eu os interrogo.
 
Eu na maioria das vezes fico confuso com as mentiras convenientes e habituais da Demiurgo, mas algumas delas apresentam elementos de prova bastante convincentes de para que servia um certo ritual: Um Arcanjo tinha sido despachado para redirecionar o curso de um asteróide que tinha escorregado além da órbita de Júpiter e seguiu uma rota de colisão com a terra. Trazer este anjo ao mundo custa milhares de vidas mortais. Manter sua forma exigiria mais uma dúzia de sacrifícios a cada hora a cada semana, para que o anjo necessariamente conclua sua missão.
 
Eu não posso dizer exatamente quantos morreram para manter esse projeto. Dez mil? Vinte mil? Quantas mortes surgiram na guerra, por doenças, ou desastres naturais que na verdade eram sacrifícios ao projetos d'Ela? Pesar o preço contra a vida dos sete bilhões de habitantes que teriam morrido se o asteróide tivesse caído na terra, porém... Pode ser uma barganha feita com Ela em nome da humanidade.
 
Sei que Ela agiu por seus próprios interesses para preservar Sua infraestrutura terrestre daquilo que sem dúvida teria tido um revés considerável. Que outras catástrofes do mundo Ela evitaria pra proteger a terra em prol da infraestrutura?
 
Erupções vulcânicas? Contágios tão virulentos e mortais como a peste negra? Invasão extraterrestre? Eu não estou dizendo que temos que gostar de tudo o que Ela faz, mas se Ela é uma pastora que mantém Seu vasto rebanho protegido de leões e lobos, talvez possamos perdoar as costeletas de cordeiro ocasionais nos bastidores.

 
MENSAGENS DÚBIAS
 
 
Eu organizo e dirijo cultos. Às vezes eu era um líder carismático. As vezes apareci aos mortais em minha forma radiante para inspirar-lhes ao culto do Demiurgo através de um de seus muitos disfarces. Às vezes eu me disfarçava como uma divindade.
 
Qualquer que fosse o meu papel, eu trouxe uma mensagem inegável a estes seres humanos os conduzindo a trabalhar para o Demiurgo. Meu rebanho pode ser uma pequena cabala se infiltrando em empresas farmacêuticas locais ou uma legião designada a construir uma vasta e intrincada infraestrutura. Uma vez que o culto cumpriu sua finalidade, o Demiurgo me enviava instruções para construir o próximo. A maior parte destas seitas se desfizeram logo que eu não estive mais por perto. Algumas precisaram ser aniquilados para eliminar todas as testemunhas do trabalho d'Ele, mas alguns sobreviveram a minha partida.
 
Quando eu servi ao Demiurgo, eu nunca me perguntei o que se tornou obsoleto nos cultos que eu inspirava. Durante minha última missão, porém, eu encontrei como meu trabalho seguidores frustrados em todas as esquinas, um grupo de seres humanos. Não tinham organização, recursos, e pior ainda, pareciam ter compreensão das infraestruturas suficiente apenas a fim de orientar os componentes mais vulneráveis do projeto que eu estava supervisionando. Eu capturei um deles e o interroguei, até que ele revelou uma verdade inesperada: sua cabala pertencia a uma pequena religião antiga, mas evoluíram a partir de um culto que eu mesmo tinha fundado para concluir um projeto do Demiurgo.
 
Eu expandi minha investigação e descobri várias outras religiões modernas e sociedades secretas que deviam sua existência a mim. Alguns possuíam textos sagrados que claramente se referiam ao aspecto em que eu tinha aparecido a seus primeiros membros. Eu escolhi um dos mais afoitos, e restabeleci o controle do mesmo, por meio de vários sinais que eles reconheceram por meio de seus textos sagrados, e os pus sobre os inimigos misteriosos do Demiurgo que atormentavam minha missão.

Quando concluído o projeto, porém, eu considerei com muito cuidado o que eu poderia exercer no mundo mortal. Eu não voltaria a Ele. Porque ser um mensageiro quando eu poderia ser um avatar divino na terra, ou até mesmo um deus entre os mortais?

 
ISCAS
 
 
Considere a ratoeira doméstica comum. Seus princípios são simples – fabricação de baixo custo, fácil operação ao usuário, e um mecanismo físico que age antes mesmo que seu alvo tenha oportunidade de escapar. E, no entanto, o mais mortífero dos elementos da armadilha é sua isca, pois sem ela, a presa não iria ao seu alcance. O mesmo vale para todas as armadilhas. Mudando a isca, você pode mudar de presa.

A maioria dos mortais não tem menor idéia de que o Deus-máquina existe. Quem encontra seus projetos geralmente acreditam que descobriram um fenômeno local ou caso contrário avistam a notória arvore e não a floresta atrás dela. De vez em quando, um ser humano segue os traços da influência do Deus-máquina o suficiente para interferir em seus projetos. Eles são os ratos na despensa, e eu uma vez fui a mola de uma barra de aço projetado para esmagar aqueles que caíam na armadilha. Não creio em nenhum momento que eu era o único anjo a exercer esta tarefa.
 
O Deus-máquina escolheu uma localização isolada a vários quilômetros de qualquer grande habitação humana e selecionou uma estrutura como o elo para os fenômenos ocultos que seriam a isca. Geralmente, este é um prédio abandonado, apesar de seus agentes por vezes “limparem” uma residência mortal. Em seguida, ele ordena a seus agentes construírem um centro de comando instalando engrenagens proeminentes em pelo menos um quarto da casa, e colocam uma torre de rádio ou antena parabólica no telhado.
 
Tudo isto parece totalmente funcional e importante. Engrenagens se movem com cliques e zumbidos suaves. Os monitores parecem exibir a filmagem das câmeras de segurança. O equipamento de comunicação transmite algumas mensagens ocultas, com um ruído de fundo na tv, rádio ou sinais de satélite. Em alguns casos, o terminal principal mostra uma face computadorizada que aparece para falar com esses peões definidos a proteger o centro de comando. Parece importante, mas não tem valor estratégico para os inimigos do Deus-máquina. Na verdade, quase tudo no prédio é lixo intercalado com distrações físicas e emanações sobrenaturais enganosas que destinam a levar qualquer um que rouba o seu conteúdo para o mais longe possível da verdade da infra-estrutura.
 
Os agentes de Deus-máquina que estão na região estão cientes da armadilha, embora eles acreditem que que ela seja a fonte de influência de Deus-máquina na região - um dos centros de comandos mais cobiçados sem a qual não poderiam operar. Ele atribui seus peões mortais mais dispensáveis para guardar a instalação os impressionando com a importância de sua missão. Eles vão matar todos os invasores que puderem apanhar.

Se um estranho penetra com sucesso esta relativamente frágil camada de segurança – feito facilmente por grupos inteligentes de invasores mortais, quem dera demônios – a verdadeira natureza da armadilha da infraestrutura se reproduz. A presença de um ser não autorizado em uma construção ativa um anjo. Silenciosamente e eficientemente ele mata qualquer investigador solitário. Diante de um grupo de invasores, o anjo lhes dá algum tempo para examinar detalhadamente algumas das distrações antes de se manifestar e matar alguns invasores e expulsar o resto. Em todo o caso, o objetivo principal de um anjo é levar os investigadores ocultistas longe da verdade enquanto os convence de que eles estão no caminho de uma compreensão maior. Os tolos suficientes para enfrentar um anjo diretamente raramente vivem tempo o suficiente para pesar seu erro; o Deus-máquina emprega estes asseclas com uma esmagadora capacidade à violência. Felizmente para os intrusos, o anjo não pode deixar o prédio ou influenciar qualquer coisa além de seus muros. Pelo menos era assim quando eu trabalhava em uma ratoeira.

 
O RESTAURANTE

 
 
O Demiurgo me implantou para abrir e atuar em um pequeno restaurante familiar em um parque industrial. Ele precisava de mim para alimentar o Templo. O restaurante era apenas uma fachada. Eu tomei o aspecto humano de um gerente do restaurante estando no comando de todas as operações.

Eu projetei menus, encomendei móveis, e contratei uma pequena equipe de mortais – o tipo de andarilhos solitários que ninguém sentiria falta se eles vissem muito e eu precisasse eliminá-los.

A cada noite, após a hora de fechar, eu gostava de ir a sala trancada que era supostamente o escritório do proprietário e alimentava o templo. Essa era, afinal, a única razão do restaurante estar lá. A curiosidade atraiu clientes que trabalharam em empresas nas proximidades, mas o tráfego reduziu a gotas logo que o restaurante deixou de ser novidade, pois sua localização era terrível. Depois de um mês eu começo a ter problemas com o pessoal.
 
Os funcionários não estavam ganhando o suficiente para pagar suas contas e a maioria deles saíram. O chef achou que seu talento seria melhor apreciado em outros lugares, e a maioria dos cozinheiros foi com ele. Eu apenas o convenci a ficar oferecendo-lhe um aumento tão grande que corria o risco de estragar meu disfarce. Cheguei a lamentar a decisão, pois descobri que ele era o mais preguiçoso do lote, e era por isso que ele não se importava-se ele não cozinhasse nada o dia todo contanto que ele fosse pago. Dada a forma de como a comida era ruim, em muitos dias não haviam clientes.

A fome do Templo nunca vacilou, porém, e eu sempre fiquei preocupado se alguém seria capaz de enxergar através do disfarce. Fiz uma pequena pesquisa e reiniciei o negócio. Em vez de tentar reconstruir a equipe, que tomei como uma causa perdida, demiti o último cozinheiro e toquei o show sozinho. A tarefa estava fora dos parâmetros de meu projeto, então eu estava muito ruim inicialmente tocando o restaurante, mas consegui atrair apenas os clientes necessários para manter o disfarce que minha missão me exigia. Eu admito que comecei a ter orgulho de meu cozinhar e me tornei um chef bastante habilidoso. Eu disse a mim mesmo que isso não interferiria com meus deveres. As linhas só precisavam ser alimentadas após o restaurante fechar, afinal. Pensei que mais negócios realizados tornaria menos provável que qualquer um notaria que o restaurante tinha algo estranho. Com a premiação da comida local pelos críticos apenais foi adicionado mais legitimidade a fachada.
 
Eu estava errado. Mais atenção acabou significando o tipo errado de atenção. A minha nova equipe foi competente, mas eles não tinham muita conexão com outros mortais. Quando um funcionário misteriosamente desapareceu, seus amigos chamaram a polícia, e isso foi irritante mesmo eles não apreendendo nada. Quando eu tive que eliminar o cozinheiro que de alguma forma percebeu o templo, porém, sua família acabou alertando alguém muito mais perigoso – talvez um demônio ou feiticeiro.
 
Um conveniente surto de salmonela estragou todos os ovos frescos dentro de três estados – um alimento crítico para os sacrifícios do Templo. Clientes mortais aceitaram meu pedido de desculpas explicando a situação, mas a infraestrutura do Senhor não é tão indulgente. Esta não era uma tarefa que eu poderia delegar, por isso eu deixei o restaurante sob os cuidados da minha assistente da gerência e viajei duas centenas de quilômetros para comprar ovos frescos.
 
Quando retornei, descobri que inimigos do Demiurgo tinham aberto a força a porta do escritório do proprietário e destruíram várias das relíquias. O resto tinha sido Conspurcado, e eu sabia que tinha falhado com meu criador. Eu sabia que mereceria o destino que Ele planejaria para mim, mas eu ainda deixei o restaurante sem explicação, entrei em meu carro, e fugi o mais longe que pude.


PLANEJAMENTO DA CIDADE

 
 
Alguns mortais afirmam que foram maçons que projetaram muitas cidades norte-americanas, incluindo Washington, DC, junto de princípios maçônicos que aproveitam as energias ocultas. Eles estão apenas meio certos. Tudo, desde o layout da rua até o horizonte foram criados com forças arcanas, mas isso é porque Deus-máquina os projetou e constantemente os utilizou.
 
No porão do escritório de planejamento da cidade onde eu guardava minha última vigília é uma grande sala acessível apenas por uma porta escondida. Eu fazia sua guarda ao lado de fora, mas muitos anjos muitas vezes apareciam nos negócios do Deus-máquina, então eu via o que estava dentro.
 
Se parecia com o tipo de modelo de escala pintada a mão que você esperaria encontrar em um museu de história local. Cada edifício, ponte, monumento, e árvore são processados nos mínimos detalhes. Poucos carros e pessoas enchem as ruas, mas em nenhum lugar próximo a população total. Ele não tem peças em movimento e realmente não parece notável exceção de sua habilidade e o fato de que ele não está totalmente de acordo em como enxerga a cidade hoje. Por que isso?
 
A maioria daqueles museus não obtiveram modelos exatamente atualizados anualmente, certo? Aqui está o negócio, no entanto. O modelo não mostra a cidade como ele realmente era no passado, mas como ele será a cinco anos no futuro.
 
Ridículo? Então porque alguns dos carros nas ruas são de modelos que ainda não foram reproduzidos? Os outdoors anunciam eventos que ocorrerão daqui a cinco anos. Se você olhar os documentos atuais da cidade poucos andares acima, você encontrará licenças de construções que já foram arquivadas como alguns edifícios que ainda não existem. Assim, o modelo muda um pouco a cada manhã. Eu não estou certo se a cidade tem um modelo deste tipo. Desde a minha queda eu vi e ouvi rumores de outros.
 
Fiquei de vigília sobre esse modelo por cento e cinquenta anos.  Vi a cidade crescer de uma pequena cidade de casas de madeira e carruagens puxadas a cavalo, a uma grande cidade eletricamente iluminada, com arranha céus, ônibus e aeroportos. Eu acho que comecei a pensar nela como minha cidade, apesar de eu nunca ter saído dos escritórios de planejamento ou encontrado seres humanos que vivem lá. Assim, quando o Deus-máquina me enviou ordens para ir tomar conta de algum mortal ao invés do que sempre fiz, eu não respondi bem.
 
Eu peguei um martelo e devastei o modelo. Eu não era mais seu guardião, então eu não poderia fazer mais nada. Nenhum novo anjo ainda havia tomado meu posto, por isso não houve testemunhas. Foi só depois que eu destruí a cidade que me ocorreu uma questão importante: Será que o modelo apenas representa as mudanças que o Deus-máquina planeja fazer em um futuro próximo ou será que altera a cidade usando magia simpática? Apenas incomodei meu criador ou será que os mortais da cidade sentirão as consequências de minha raiva? Se as alterações do modelo refletem na cidade, eu posso prevenir o desastre que eu provoquei?
 
Já se passaram quatro anos desde a minha queda. Eu tenho que preparar minha cidade para o pior.


SEM TEMPO
 
 
Alguns mortais morrem antes de seu tempo, quero dizer que eles tinham um papel a desempenhar em um dos projetos do Senhor, mas morreram antes que pudessem servir seu propósito. A maior parte do tempo eles simplesmente encontraram outra maneira – localizaram outro humano adequado, executaram um projeto de back-up que iria reproduzir o mesmo resultado, ou simplesmente inverteram a hora e o local que gerou uma falha infeliz em seus planos.
 
As vezes o Senhor precisa muito trazer alguém de volta, então Ele envia um anjo no lugar do corpo antigo. Mas anjos não fazem o que fazemos, possuir um receptáculo e se tornar ele. Não, antes de qualquer mortal ver o corpo morto, o anjo livra-se do corpo e assume sua aparência, uma fina casca de glamour por sobre a essência angelical. O anjo realiza qualquer plano que o mortal exerceria segundo os planos do Senhor. Uma vez que sua missão é feita, o anjo encontra uma maneira conveniente de "matar" o corpo, de modo que ele possa passar a sua próxima missão.

Estas missões são normalmente curtas – alguns dias ou semanas – assim eles não precisam pensar muito sobre se “hospedar no indivíduo”. Geralmente alguém percebe com o tempo que o velho Mike está agindo de forma diferente, mas a missão termina e puf, Mike está morto. Seus entes queridos culpam o álcool, a depressão ou qualquer outra coisa que possa explicar seu comportamento e morte inesperada, tentando minimizar os prejuízos de suas vidas.

Minha última missão foi um problema. Meu alvo tinha três filhas pequenas e deus precisava dele vivo tempo o suficiente para ver o filho primogênito da menina mais velha nascer. Sua morte repetina significava que um disfarce temporário não iria servir; a mais velha não teria um filho em vinte anos. Eu improvisei, tomei seu corpo como receptáculo. Tornei-me ele.

Um dos outros critério é que meu alvo precisava dar a ela uma educação mortal comum, então fui obrigado a aprender a ser o que os seres humanos consideram ser um bom pai. O sujeito também tinha uma família grande, então rapidamente me obriguei a manter meu disfarce envolvido me comportando como um marido, irmão, filho e tio. Eu tinha tempo de sobra para conhecer todos os membros da família. A família do sujeito quero dizer. Gastei esse tempo vivendo uma vida mortal completa com todas as suas memórias fazendo meu senso de mim mesmo não se favorecer.

Meu filho mais novo – sim, eu e minha esposa tivemos um filho ao longo do caminho- se casou e teve filhos anos antes de minha filha mais velha, mas depois de vinte anos, finalmente ela nos informou que esperava um menino. Eu sabia que minha Identidade tinha poluído muito minha natureza fazendo eu me preocupar realmente com o bem estar emocional de conexões humanas que poderiam me causar conflitos em missões futuras. Mas muitas pessoas adoraram este avô que eu havia me tornado para eles; Eu sabia que eles iriam sofrer quando ele morrer.
 
Eu resolvi não deixar assuntos inacabados para trás e escolhi um método de morte que eles aceitariam. Eu pedi desculpas a aqueles a quem eu havia injustiçado, pus meus negócios em ordem de forma que minha esposa seria cuidada quando eu estivesse partido, e fabricando registros médicos mostrando que eu tinha problemas cardíacos. Eu mesmo tinha um diário de família com memórias felizes escondidas que meus entes queridos o encontrariam após “eu morrer”.
 
A minha filha tinha seu filho. Eu os visitei no hospital. Minha missão estava completa. Eu pretendia ir para casa e morrer de ataque cardíaco durante o sono, que é considerado para os mortais como uma morte pacífica. Quando eu virei a esquina de nossa pequena rua, uma bicicleta eclodiu contra meu caminhão. Foi uma das minhas netas. Ela tinha apenas 10 anos. Não havia nada que eu pudesse fazer. 
 
Ela já estava morta.
 
Eu sabia que minha família iria chorar minha morte, mas duas tragédias em um dia – em um só acidente – foi mais do que eu poderia suportar infligir a eles. O avô não era um homem velho, mas sua vida estava completa, fechada como um livro finalizado. A menina, porém, havia morrido tão jovem. Ela morreu antes de seu tempo, e isso era um problema que o Senhor me criou para corrigir...

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