Anjo Salvador - 15  

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 Capítulo 2

Sessão 15

 

Fortaleza Impenetrável de Falonde - Início de 590E

 

“Essa semana passada, a contagem de mortos chegou a vinte milhares, quarenta contando ambos os lados. Sozinhos, sustentamos, ahn, duas centenas de milhares de feridos também”, diz lorde Menesar, um dos conselheiros do poderoso Duque Drewsaw, sentado junto de seus pares em um bonito escritório, discutindo assuntos de guerra após uma boa refeição.

 

“O número de causalidades não preocupa-me”, adiciona um elegante marquês Bartholomeu Darney. “Nem a diminuição do tesouro; tais coisas são esperadas. Não, são as chuvas que nos ameaçam. Os mercados estão vazios, e a coleta de impostos baixa. Com os preços como estão, podemos contar com suprimentos para mais meio ano, no máximo.”

 

“Duque Volstan certamente sofre dificuldades similares”, diz barão Yemovich, lorde senhor de Táurida. “A chuva ficou presa nas montanhas esse ano, e a seca tem atingido as terras centrais. Os grãos não cresceram, a produção de Nigallin foi ínfima.”

 

“O problema verdadeiro é a guerra”, interrompe firmemente o general Anaxander. “Não há trabalho. Vilas inteiras tiveram que ser movidas. Nicolas nos trás relatos de que cem mil já fugiram para Doleris, e mais escapam a cada dia.”

 

“Hah!”, exclama Yemovich. “Eu que não vejo problema nisso, senhores. Que Volstan arranque os cabelos tentando alimentar tanto seus soldados quanto as massas fugidias.”

 

“Isso não é motivo de risada, milorde”, responde o general. “Caso o conflito se espalhe, nós poderemos encontrar-nos em semelhantes maus lençóis. Crês Falonde ser à prova de tal destino?”, ele olha em volta a seus compatriotas, “Garanto-lhe, não somos! Excelência, não chegaste a hora de trilhar um curso rumo à paz?”

 

“Teus medos são bem-fundados, meu general”, diz Drewsaw, distante e pensativo. “Porém, não podemos terminar essa guerra. Não ainda. Aumentaremos em terça parte os impostos, e manteremos vigia para que ninguém venda grãos acima do preço ao povo nesses tempos difíceis. E quanto aos refugiados aumentaremos as patrulhas nas fronteiras, para que sejam mandados de volta.”

 

“Duque Volstan sofre, bem como nós, milorde. Que melhor hora para tratar paz se não essa?”

 

“Tu falas em círculos, Thibauld. Não há solução pacífica para isso.”

 

“O reino não pode existir sem seu povo, Excelência! Tampouco podemos nós. Na Guerra dos 50 Anos, quem portou fardo maior do que o povo? Agradeceria-os agora com impostos mais elevados?”, adiciona o general consternado. “E não falo apenas de nosso povo; nossos soldados são forçados a lutar à base de rações que dificilmente alimentariam uma criança nas saias da mãe. Fome trás fraqueza, e fraqueza trás doença milorde. Não podemos mais sustentar essa guerra. É uma questão de recursos, e de determinação.”

 

“Determinação? E a ti sobraste alguma após a última guerra?”, dispara o duque. “Teu é o discurso de um covarde!”

 

“A Guerra dos 50 Anos foi lutada para evitar uma invasão em nosso solo soberano. Tal era diferente, milorde, nossa honra nos impelia.”

 

“E quanto a ESSA guerra, tu não sente-se impelido?”, dispensa o duque, irado. “Tu nunca foste um dado a hipocrisia, Thibauld. Mostremos fraqueza agora, e eles apenas golpearam-nos mais forte. Essa luta não é apenas por nós, mas igualmente pelo povo. A coroa os ofende com cada ato; lutamos para libertá-los de tais tiranias.”

 

“Vossa excelência está certa”, adiciona lorde Yemovich. “Além do mais, abaixarmos nossas armas com a vitória tão próxima? Teu apelido não lhe faz jus, "Santo de Ferro" Thibauld. Tuas palavras gentis parecem mais saídas de uma ábade.”

 

O general cerra os olhos. “Está a vitória tão próxima, Yemovich? Meus ouvidos não ouvem sua aproximação. O que vês em nosso sofrimento que prevê vitória?”, ele provoca. “Ou abandonaste o uso dos olhos em favor de algum tipo de clarividência que lhe mostra tal destino invisível?”

 

“Eu não tolerarei teus insultos!”, brada o barão, se levantando.

 

“Basta”, ordena Drewsaw, fazendo os dois homens sentarem-se. “Tu me desapontas, Anaxander. Oro que não me desaponte ainda mais...”, diz, fazendo o general abaixar a cabeça e o silêncio dominar o ambiente. “Eu direi isso apenas uma vez. Qualquer homem que discordar do curso de ação que escolhi, remova-se agora. Eu não admitirei mais dúvidas, Thibauld!”

 

***

 

-A princesa Valerie fora resgatada por um Ovelha Negra de Falonde chamado Ian, antes um segundo em comando dos Ovelhas Negras. Em recompensa recebe o comando da tropa, substituindo o falecido Barão Konslau de Theodosia;

 

-Drewsaw marchou para a capital, tomou a Guarda do Dragão de assalto, fez ser coroada a princesa e, em nome da princesa, deu ordem de prisão para a Rainha, a acusando de traição e ter ordenado a morte de Valerie;

 

-A rainha Eldereth foi capturada e levada como prisioneira a Bel’Toras;

 

-Parte da nobreza, apoiando Duque Volstan, desacredita Drewsaw e apoia a coroação do infante Kylan e retomam Doleris, cujas forças retornam para Honorest e Falonde frente as forças de Nigallin e Doleris;

 

-Dissidentes de ambos os lados abandonam seus patronos e viram casaca, levando informações importantes consigo e gerando um clima de paranoia;

 

-O inverno vê batalhas terríveis, soldados morrem de fome e doenças da guerra, ou morrem de frio em frontes distantes e mal-equipados para resistir ao inverno;

 

-Impostos excessivos atacam uma população enfrentando o frio gélido do inverno, fome e violência tornam-se comuns;

 

-A morte do Cardeal Hammoch, amplamente considerado um homem de razão e capacidade de acalmar os conflitos, torna-se pública, versões dizem que morreu de causas naturais, outras que fora assassinado, e alguns mencionam que um terrível monstro fora visto na data, levantando questões sobre a natureza negra de seus assassinos.

 

-Comandantes e generais não se encontram mais para discutir civilmente os termos de batalhas após assassinatos sangrentos efetuados, e negados, por ambos os lados durante esses momentos de armistício;

 

-Milicianos e recrutas são chamados para reforçar ambos os lados, e o ermo fica cada vez mais sucessível a ataques de bandidos e desertores, animais e monstros, mercenários assumem papel de protetor e bandido, soldado e espião;

 

-O fim do inverno e começo da primavera trazem ainda mais forte chuva excessiva ao Oeste e seca nas regiões altas do Leste de Eimland, plantações apodrecem molhadas antes de serem colhidas, ou tornam-se espinho seco e sem fruto, começam êxodos no campo conforme vilões fogem de senhor a senhor, fugindo da guerra, bandidos e fome;

 

-Nenhum lado consegue uma vitória decisiva, e cada vitória simbólica de cada lado vem com um alto custo em sangue, a guerra perde vapor conforme os homens perdem a força nos braços, as grandes batalhas são trocadas por escaramuças menores e ataques de ódio em pontos fracos, conforme um impasse nervoso, silencioso e doentio vem da nobreza.

 

-Conforme expandem os números de homens na companhia, a fim de ter segurança em uma força maior, contratam os serviços de Sera Yulia Chausson de Falonde. Sera Chausson era uma Cavaleira das Ovelhas Negras de Taúrida, mas após a derrota e morte do Barão Konslau e o desaparecimento de alguns de seus companheiros, rumores chegaram a seus ouvidos de que alguém estava eliminando os últimos irmãos das Ovelhas Negras restantes. Corretamente temendo por sua vida, ela deixou Falonde à mesma época que o impostor Ian “resgatou” a princesa Valerie.

 

-Capitã Karissa afastou-se de Lian e entregou sua espada ancestral, Toque Róseo, para a princesa Valerie, para que ela tenha algo para se proteger nesses dias. A verdade, porém, é que ela entregou uma réplica, e pediu para Katherine salvaguardar a vcrdadeira. A capitã parece temer espiões, e que está usando isso como isca.

 

-Cormac jurou vingança contra Alan pelo fratricídio de Le’Berry, um crime como nenhum outro. Notícias chegam de que frente à vontade final de Le’Berry de não cruzar o caminho dos Dragões, Cormac se separou dos Lâminas com alguns de seus homens, seguindo seu próprio caminho.

 

-Rose-Marrie e Lian reatam algo antigo que tinham, encontrando apoio um no outro. A jovem feiticeira afasta Verner, não deixando que ele aproxime-se mais.

 

-Verner descobre que a magia que protege Alan está falando, algo relacionado à magia de sangue que usara contra Le’Berry. Onde antes o homem parecia sob eterno controle, imune e distante do mundo, agora ele parece fraco, adoecido.

 

-Através de cartas que por vezes divide com seu irmão Elbrich, Lian é informado que sua antiga companheira Mildred de casou com seu irmão Vincent, outrora viúvo.

 

 

Povoado de Léria - Princesa 22 de 590E

 

Os meses seguintes vêm os Dragões Pálidos retornarem para a cidade livre de Sildalar como ponto de encontro e recuperação, especialmente por ter acesso portuário fácil a Falonde ou Honorest. Vários dos homens sofreram ferimentos profundos nos loucos dias antes da morte do cardeal, e precisam de recuperação e descanso, o que pouco se compara com o golpe psicológico sofridos pelo encontro com algo que para todos os propósitos não deveria existir.

 

Ao longo desses meses, os Dragões Pálidos tiveram que tomar muitas decisões. Primeiramente, a decisão de se esconder em Sildalar para evitar qualquer atenção que poderia se fazer atrás deles. Usam o tempo também para organizar suas forças, e lidar com situações administrativas. Ainda mais importante, o próximo passo tanto do grupo mercenário quanto de alguns membros em particular.

 

Karissa tencionava ir à Cidade Real de Doleris a fim de ter com o Cavaleiro-Comandante da Guarda do Dragão. Enquanto a guerra corre, apenas eles sabem que há algo a mais nela, algo utilizando de forças sobrenaturais, por trás dessa guerra, com seus próprios objetivos; Karissa se nega a deixar esse aspecto de lado e oferecer suas forças para qualquer um dos lados, e acredita ser válido revelar o que ela sabe, a verdade da situação, ao cavaleiro-comandante Dargos. Ele é um homem de honra e fé, um paragão mesmo entre os paragãos da Guarda, e por mais que não possa modificar a situação, ou mesmo ajudá-la, ela acredita que um homem importante como ele deve saber da verdade. Por mais que ele possa não acreditar em suas palavras, Karissa sabe que ao menos irá dar alguma importância, e com essas informações talvez enxergar um pouco da realidade.

 

Não apenas isso, mas ela também incentiva que Lian faça similar, mas voltado ao seu irmão, Elbrich Calhart. Elbrich não é chamado de Cavaleiro Devoto à toa, e ela o considera como um homem de honra e fé impecáveis. Como Dargos, ela não acha que ele irá acreditar inteiramente, ou que poderia fazer algo mesmo que acreditasse, mas o simples fato dele saber disso o deixará mais preparado caso algo aconteça.

 

Também, fazia-se necessário decidir o próximo passo. Eric tem uma obrigação moral com a verdade; não está atrás de glória de um grupo mercenário ou mesmo riqueza; categoricamente diz que se estivesse atrás disso voltaria às terras de sua família. Proteger as joias, e não permitir que os conspiradores com forças sobrenaturais façam algo de ruim para Eimland com elas é seu objetivo. Mas ele sabe bem que um homem inteligente não deve se jogar no campo de batalha apenas com sua coragem; Conhecimento é metade da vitória, e atualmente eles sabem muito pouco sobre as joias. São realmente obras do criador? Ou são artefatos demoníacos ligados ao véu? Konstrow era um império poderoso, governado por reis feiticeiros dados à magia e, com isso, demonologia. Mas e as joias? Dion passara um bom pedaço de sua vida dedicado à joia azul, estudando suas propriedades, e ainda assim se considerava sabendo muito pouco. Por onde começar?

 

Pensam nas possibilidades, onde seria possível pesquisar. Recorrer à Igreja é jogado de lado rapidamente; ninguém acredita que a Igreja esteja por trás desse mistério, mas o envolvimento do Cardeal cria precedente para que talvez outros membros da Santa Igreja estejam envolvidos. Duas ideias principais são consideradas então: Primeiro, A Antiga Ordem dos Cavaleiros Negros, uma irmandade anciã de anti-heróis e anti-vilões, donos de conhecimentos e técnicas antigas, que talvez tenham acesso às informações que servem de base para as lendas. Segundo, Verner recomenda irem até a terra de onde veio, a terra das Bruxas da Neblina, onde poderam canalizar a energia de potentes menires e rituais locais para comungar com os espíritos e receber respostas que possam lhes guiar.

 

Uma vez que a fortaleza anciã dos Cavaleiros Negros fica nas montanhas que levam à Edhervarst, e essas ficam completamente congeladas e inacessíveis durante o inverno, optam por seguir a ideia de Verner primeiro. Iriam de barco até o norte de Doleris, rumariam ao Vale da Neblina para Verner fazer seus rituais, depois seguirão à capital de Doleris, e tão logo a primavera chegue rumarão Norte, para a fortaleza dos Cavaleiros Negros.

 

Tais decisões os levam às não menos importantes decisões quanto ao seu pessoal. Karissa é uma mulher determinada, e sabe bem o que quer. A cavaleira afastou-se de Lian, e mantem-se firme com seu curso de retornar à Ordem. Enquanto isso Katherine parece ter crescido e envelhecido anos em poucos meses, a dura realidade do espelho quebrado afetando a jovem.

 

Havia também a situação de Zigrun; com a morte de Danny Garreau, e sua dívida para com os Dragões paga, precisam convencê-lo a permanecer com eles. Apesar de nem todos confiarem no bandido-selvagem-traidor-de-chefes, acreditam que um homem de suas habilidades pode ser necessário nos meses que seguirão, e oferecem para ele a chance de fazer o que é certo pelo mundo, de lutar pelo que há de correto onde ninguém mais irá lutar. Zigrun por sua vez preocupa-se com sua irmã mais nova; é possível que ele demore meses, se não anos, até poder retornar à sua irmã, e há a ainda mais provável chance de que ele não volte vivo. Ele é o provedor de sua irmã mais nova, e não quer que ela tenha que sofrer sozinha em um mundo duro e cruel, portanto tem uma exigência: Ele os acompanhará além do véu se for necessário, mas eles precisam garantir à ele que ela terá uma vida tão confortável quanto uma burguesa, que nunca terá que correr atrás de moedas para pagar um aluguel, que não passará dificuldades financeiras e que não estará sozinha. Sua irmã é esforçada e trabalhadora, mas ele não quer que ela seja pobre pelo resto da vida por não ter nascido de família rica.

 

Recorrem ao mestre Dion, que faz parte da sociedade tecnocrata, para que os ajude tomando a irmã de Zigrun como sua pupila, lhe ensinando sua profissão e lhe conseguindo uma posição entre os tecnocratas. Com conhecimento em engenharia e tecnologia, bem como sendo membro da guilda mais importante de Sildalar, ela jamais passaria necessidades e teria empregos e remuneração garantidos. Frente à situação mestre Dion aceita, dizendo que já treinou uma aprendiz que agora parte, poderia bem treinar outra.

 

E tal os leva à Léria, uma vila murada de porte médio, um dos últimos pontos de civilização em Doleris antes das águas rápidas e turbulentas mais próximas às montanhas. A vila é pacata, especialmente durante o inverno, e serve como pouco mais que uma parada aos Dragões. Ali é o ponto mais perto antes das terras altas incivilizadas e rurais que levam até o famoso Vale da Neblina, uma região de povos selvagens escondida no ermo e nas montanhas, onde o véu é fino e as bruxas comungam com demônios e controlam o povo selvagem da região.

 

Verner os avisa que precisam primeiro da permissão da bruxa local. Ele era uma guardião das Bruxas antes de deixar sua terra, então com certeza receberia permissão de uma delas, mas ainda assim, como terras sagradas, é protocolo correto a se observar pedir permissão àquela que fala com os espíritos. As bruxas são livres, então a melhor chance de localizar uma, ou mais certeiramente, um de seus servos capaz de se comunicar com uma, é no templo de Ceanndubháin.

 

O prospecto de ir até uma região controlada por Verners, onde o mesmo diz que não saiu nos melhores termos, não agrada a diversos, mas o que é necessário é necessário. Tampouco os anima a chegada de uma moça chamada Ausveig, suposta filha de Verner, que fora enviada “pelos espíritos” que informaram onde ele estaria. A recepção é pouco calorosa quando a garota estapeia Verner -em nome de sua mãe, ademais, por ter sumido por mais de dez anos-, mas também quando ela revela que as terras altas estão em movimento, pois um Finn fora declarado.

 

Um Finn, Verner explicara, é uma reunião do povo dele, que simplificadamente significa “Coisas” ou “Troços”, uma reunião convocada por uma Bruxa onde todos os povos da região, de trabalhadores a lordes, podem responder. É de tradição que todos os não-escravos possuem uma semana livre antes e depois do Finn, para que possam viajar até o templo, pagar o respeito aos espíritos e retornar. Um Finn é chamado pelo motivo que a bruxa achar apropriado, e normalmente são para falar de assuntos que afetam a comunidade como um todo, como celebrações, festividades, perigos e visões, o anúncio de novos chefes guerreiros dentre outras coisas, ou seja, são para discutir Coisas.

 

O Finn seria um ótimo momento para localizar a Bruxa da Neblina, mas o ânimo de Verner morre um pouco quando é informado que sua antiga mentora, a Bruxa Sandy falecera, tomada pela idade, e que em seu lugar a menos de um ano está alguém chamada de Luthien. A consternação nos olhos de Verner não anima seus companheiros, mas ainda assim o grupo parte deixando a administradora dos Dragões para conseguir recrutas e talvez alguns trabalhos com pagamento razoável.

 

 

Ermo - Norte de Doleris - Princesa 25 de 590E

 

Subiam gradativamente em direção às terras altas. A neve que derretia nas partes mais baixas e mais quentes estava começando a se mostrar nas partes mais altas; os rios eram gélidos como a morte, neve ainda caía alguns dias, e animais ainda demonstravam sua pelagem branca de inverno. Passaram por bosques, florestas, clareiras decoradas, estradas rurais e acampamentos de lenhadores, bem como vilarejos pequenos, reclusos e sem comerciantes, onde o povo selvagem insular, marcado em tatuagens de verde e azul, não é particularmente aberto mas ainda assim estende a hospitalidade de uma refeição quente e teto por uma noite se não mais nada por honra às tradições.

 

Não anoitecera ainda, e os viajantes, acompanhados de Sera Chausson como apoio, descansam de um longo dia de caminhada protegidos do vento uivante pelas árvores da floresta e em volta de uma grande fogueira.

 

“Não entraste em grandes detalhes, Verner”, inicia Lian, cutucando as chamas.

 

“Não”, responde o duro selvagem, que cortava as unhas.

 

“Disseste que não saíste nos melhores termos”, insiste Lian. “Estás seguro que seremos bem recebidos?”

 

“Estou.”

 

Não tão confiante assim, Aasveig xinga algo baixo, assando algumas lebres.

 

É então que ouvem um barulho das árvores próximas. De reflexos rápidos, Katherine que soltava alguns gravetos perto da fogueira aponta uma flecha para o barulho. De trás de uma árvore sai um homem também com um arco apontando para a arqueira. O homem tem a pele parda de um Selvagem, cabelos curtos e duas tatuagens azuis no rosto.

 

“O-pa! Largue esse arco, mocinha”, grita o homem, em um divertido tom.

 

“Fearghal?”, indaga Verner, abaixando o machado ao reconhecer o homem.

 

“Verner?”, ele pergunta, e logo que nota a jovem Aasveig ele solta o arco, aproximando-se do acampamento e abrindo os braços em abraço. “Pelos Cinco, Verner, é você. Pelas galhadas, parece que faz anos que não lhe vejo!”

 

Katherine abaixa o arco e se senta, Lian indaga. “Tu conheces Verner então?”

 

“Ay!”, diz ele arranjando um lugar no acampamento, para consternação de Sera Chausson que tinha a mão disfarçadamente ao cabo da espada. “Pequeno Verner é muito amado por essas terras! Sua sabedoria e sapiência muito fizeram falta!”

 

“Me linsongias...”, ele diz, desconversando.

 

“E o que faz nessas terras, sábio guardião?”

 

“...sábio guardião...?”, diz baixo uma confusa Rose-Marrie.

 

“Eu e meus companheiros estamos indo em direção à Ceanndubháin. Precisamos ter com a Bruxa.”

 

“Ay, entendo. Bons ventos a trazem então, haverá um Finn em alguns dias em Ceanndubháin!”

 

“Assim soubemos. Apenas uma Bruxa convoca um Finn, logo a encontramos lá.”

 

“Fearghal, não estaria direcionando-se para lá, estarias?”, indaga Verner.

 

“Nossas, como você fala elegante. Civilizou-se de vez?”, ele então brinca, fazendo uma voz, “Sim, deveras eu estarias direcionando-me para lá e visitar-lo-ei”. Se quiser podemos viajar juntos, como os velhos tempos.”

 

“Como os velhos tempos”.

 

“Ay! Motivo para comemorar! E também, as estradas são mais seguras com um Bardo. Ah sim, sou um Bardo oficialmente agora, um cantor aos espírito, ayay!”

 

“Aceitaríamos, nobre Fearghal”, se mete Lian. “Sou Lian Calhart, e ficaria honrado em ter-lhe como guia. Apenas indago-me, o retorno de Verner não causará discórdia?”

 

“Verner? Discórdia? Nay!”, ele então pega um odre de bebida alcoolica da mochila. “Mestre Verner aqui não faria mal a uma mosca!”, e então o abre com os dentes. “Serão muito bem recebidos!”

 

“Nesse caso então seja bem-vindo. Sente-se e divida nosso fogo”, diz elegantemente Katherine, que entende os costumes de hospitalidade do ermo.

 

“...a bruxa convoca o fim...”, murmura Lian.

 

“...a piada perdeu a graça na terceira vez Lian querido...”, murmura Rose-marrie.

 

E é apenas nessa hora que uma faca cristalina que Eric tinha à sua mão se desfaz, o som abafado de vidro se quebrando preenchendo o ar. Sua expressão muda, e seu ar duro e severo, até mesmo irritado, resume-se ao neutro gentil de sempre.

 

Quieto perto da fogueira, Alan observa com cuidado.

 

***

 

“Eric, tu não acreditarás em que o jovem Rodrig-“, dizia Oliver Le Tonnelier, mago de guerra e companheiro de Eric, adentrando à sua tenda dias atrás.

 

A concentração do feiticeiro se quebra, e o som de cristal quebrando é audível no ambiente.

 

“QUANTAS VEZES EU JÁ FALEI PARA NÃO ME INTERROMPER?”, explode o homem, seus olhos repletos de ira, as veias de seu pescoço saltadas.

 

Oliver imediatamente dá um passo para trás, chocado e assustado ao mesmo tempo.

 

“Oliver eu... pelo Criador, sinto muito”, adiciona Eric, antes de sua postura “cair” para frente, exausta.

 

“Eric... tu... não... Tu insistes nisso?”, diz o amigo, preocupado.

 

“Eu preciso, Oliver, tu sabes que preciso.”

 

“Eric tu não tem nada a provar a ninguém! Ser capaz de manifestar as Lâminas de Saphoron é feito o suficiente. Tu é o melhor de nós.”

 

“Não é hubris que me guia, Oliver, mas dever. Eu não... eu não fui capaz. Eu preciso ser mais forte. Encontrar uma forma. O Criador incumbiu a nós, a mim, essa missão!”

 

“Eric ouça tuas palavras! Ninguém... por Alene... Ninguém estaria preparado para aquilo!

 

“A falta de preparação dos outros pouco é desculpa para que um verdadeiro mago de guerra não prepare-se”, recita Eric.

 

“Arquimago Saphoron, Meditações Sobre Percepção e Violência”, responde Oliver. “Eu... eu entendo. Só... só me prometa que vai contar para alguém, antes que isso te mate. Margareth, pelo menos...”

 

“Eu irei... mas por hora...”

 

“Eu sei manter um segredo...”, responde Oliver, abaixando-se perto do amigo.

 

E do lado de fora da tenda, a algunas tendas de distância, uma maçã verde é mordida por Alan, que silenciosamente observa.

 

 

 

Templo de Ceanndubháin - Norte de Doleris - Princesa 26 de 590E

 

É passada da metade do dia quando finalmente chegam à região de Ceanndubháin. A região a uma ou duas horas de viagem é claramente diferente; o ermo ali tem outro visual: Trilhas, estradas, bancos feitos de toras de madeira, altares menores, sinos de vento e apanhadores de sonhos decoram o ambiente. É notável também a falta de lobos e outros predadores, bem como a floresta ser mais “cuidada”; não há árvores velhas caídas ou quebradas, em muitas partes as folhas secas do outono e inverno foram roçadas para longe ou usadas de adubo, e, mais importante, começavam a cruzar com visitantes em rumo ao templo.

 

As voltas do templo são particularmente interessantes. O templo é uma construção grande de madeira, do tamanho de um casarão grande, e é cercado por mais três prédios de madeira adicionais, mas a região em volta não possui vila ou casebres, e sim clareiras espaçosas, “praças” centrais com bancos de madeira ou pedra, e uma profusão de barracas, cabanas, carroças e visitantes. Uma mistura de feira medieval com encontro comunitário, ali tem visitantes das várias vilas, vilarejos e povoados dessa região, bem como caçadores, andarilhos e viajantes locais.

 

O povo usa esse tempo para celebrar e mercadejar. Pessoas de vilas diferentes, que muitas vezes somente se veem durante o Finn trazem mercadorias para trocar, comida, bebida e música, usam esse período para se socializar com outros de seu povo, conhecer gente nova, selar laços comerciais, de amizade e por que não de família, com a oferta de jovens para casamento em um clã ou outro, reforçando as linhagens e alianças. Devido a tudo isso dezenas, se não centenas de selvagens se encontram, dividindo bebidas, risadas, jogos de força e sorte, orações e conversa.

 

O ambiente é chocante para os civilizados ali. Não apenas por verem tantas pessoas de pele não-rosada e cabelos pretos, castanhos, alaranjados ou vermelhos; não por causa da concepção de amizade e privacidade do povo selvagem ser diferente, com muitos abraços apertados como cumprimentos, casais namorados trocando beijos em público em meio à festa; não por causa de homens e mulheres fortes e pouco vestidos, disputarem jogos de força; não por causa do dialeto estranho e sujo; não por causa de quase todos terem extensivas tatuagens azuis; e sim por que Verner parece sorridente e amável, cumprimentando as pessoas e sendo cumprimentado, ao invés de estar feito em um bicho no canto, de expressão fechada.

 

É então que são surpreendidos quando veem um Verner estacado no chão olhando para alguém que se aproxima, as mãos nervosas abrindo e fechando como de quem não sabe o que fazer. Do grupo se aproxima uma mulher loira vestida em bonitas mas rústicas vestes rubras, os olhos predatórios travados nos do druida.

 

“...Verner... o bom filho à casa retorna...”, diz a mulher, com um meio-sorriso malvado.

 

“Luthien...”, responde Verner, em uma mistura de sorriso amarelo e desafiador.

 

É sim o fato que Luthien avança sobre Verner e lhe dá um fogoso beijo apaixonado, chegando a curvar o druida, que responde com o mesmo afinco, que realmente deixa todos desconfortáveis, e Rose-marrie corada.

 

“Ahem”, pigarreia Sera Chausson ao desviar o olhar. “De fato então Verner conhece essa moça.”

 

“Conhece? Eles são amantes”, murmura Aasveig.

 

Conforme o povo em volta sorri, e depois bate palmas ou grita em apreciação, uma voz estrondosa se junta ao coro.

 

“Muito bem velhote! É bom ver que ainda tem energia nesses ossos!”, grita uma figura que coloca o braço em volta dos ombros de Lian.

 

O olhar de ambos cruzam-se, e para seu choque Lian está encarando o sorriso maldoso de Cormac, campeão e braço direito de Zackary Le’Berry. Encostado em uma árvore, Alan franze o cenho.

 

“...milorde...”, tenta dizer algo Lian.

 

“Não aqui. Não agora. O Finn é sagrado”, ele adiciona, uma voz rouca e sombria, apesar do sorriso externo.

 

“Aguardava por esse dia, malamute”, diz a loira, soltando Verner, que se recobra.

 

“...Malamute?”, se espanta Katherine.

 

“Não sabia se quando o dia chegasse te esbofetearia ou devoraria”, ela sorri. “Acho que ficarei com a segunda opção”, completa, convidando Rose-marrie e Katherine a observarem o ambiente distante, ruborizadas. “Teus amigos?”

 

“Meus companheiros sim, Luthien.”

 

“Apresento-lhes Luthien, a Bruxa de Ceanndubháin”, faz uma reverência alegre Fearghal.

 

“Bruxa, então?”, sorri Verner.

 

“As outras não tinham a menor chance”, sorri malvadamente a loira.

 

“Nay, não tiveram. Luthien as fez em pedaços. Mas essa é uma história para outra hora”, comenta o bardo.

 

“De fato o é...”, ela diz, observando outra pessoa que se aproxima, uma mulher de meia-idade, com olhar calmo e as tatuagens e maquiagens típicas de uma mulher desse povo, ou de uma bruxa da floresta para os civilizados. “Pois bem, aproveitem o Finn. Acho que será uma noite bem “proveitosa”, ay?”, ela diz a Verner, apontando para a mulher.

 

Verner aproxima-se da mulher rapidamente, e ela para perante ele, ajoelhando-se e tomando sua mão.

 

“Mestre Verner, honrado marido, é bom ter-“, começava, mas é interrompida por um Verner que ajoelha-se junto dela e a toma em um abraço apertado e um longo beijo.

 

“Amante?”, indaga baixo Chausson.

 

“Nay. Esposa dele”, responde um alegre Fearghal.

 

“Esposa?”, perde a compostura e surpreende-se até mesmo a determinada Katherine. “Mas ele...”

 

 

Templo de Ceanndubháin - Norte de Doleris - Princesa 26 de 590E

 

A manhã seguinte começa com os membros do grupo arrastando-se para fora de suas tendas para serem recebidos pela gélida manhã das terras altas, apenas remediada pelo cheiro de carne e linguiça frita de uma grande frigideira sendo manuseada com perfeição por Rhagga, esposa de Verner.

 

“Ah!”, se assusta Rose-marrie ao sair despenteada de sua tenda e dar de cara com um desconhecido. Negando-se a aparecer descuidada ela foge para dentro da tenda novamente.

 

“Ele não vai ter interesse em você”, brinca Verner, que toma banho em um tonel.

 

“Nem deveria!”, grita a jovem.

 

“Muito magra pra mim...”, comenta o homem displicentemente.

 

“Eu ainda estou ouvindo, milorde!”, grita contrariada a garota de dentro da tenda.

 

“E tu é quem mesmo?”, aponta com o esfregador de costas Verner.

 

“Breonnan”, o homem responde.

 

“Breonnan”, confirma Verner.

 

“Sim, Breonnan”, o homem adiciona.

 

“E o que caral-“, começava, mas é cortado.

 

“A gente fode, Pa”, diz com pouca paciência Aasveig, trazendo farinha e hidromel à sua mãe.

 

Os próximos minutos são dados à constrangedora situação de Aasveig e Breonnan, a qual são tecidos paralelos com Lian e Rose-Marrie, à seu contragosto. Eric educadamente se remove da conversa, e eventualmente Alan exige atenção de todos, pois tem o que discutir.

 

“De uma forma ou de outra”, diz Alan, interrompendo. “Alguma resposta quanto à permissão de seguirmos, Verner?”

 

“Hm... Eu conversarei com Luthien hoje mesmo.”

 

“Hoje?”

 

“Eu estava ocupada ontem.”

 

“...claro...”, comenta Lian abaixando a cabeça.

 

“Eis o café da manhã. Irei deixar-lhe com seus assuntos Malamute. Apenas não suma por mais um ano; sinto sua falta, e deixou claro noite passada que sente minha falta também”, ela diz, dando um beijo em seu “Malamute”.

 

“Informação demais...”, murmura rose-marrie afundando o rosto em si mesmo enquanto come.

 

Conforme o homem vai, Verner tira as dúvidas de seus companheiros. Ele e Luthien tem uma história longa, e não há nada de errado em ela ter um ou uma amante, ou mais, e ainda ser casado. De fato, é um comportamento bastante comum; querer dividir seu coração com alguém não significa não querer dividir a cama com mais ninguém, não no povo dele.

 

Ele também explica sobre ser uma Bruxa. Quando uma bruxa retorna à terra, outra é escolhida pelos espíritos para assumir seu lugar. Sandy, a bruxa que lhe criou o treinou para ser um Guardião, o espírito troca-peles que protege o templo e a região, o braço armado e distante da Bruxa, seu campeão... mas Verner seguiu seu próprio caminho, por suas próprias razões. Os testes e desafios para a Bruxa são muitos, e o preço à se pagar pela conexão espiritual superior, pela investidura espiritual, é alto. Não apenas as Bruxas são estéreis e etéreas, elas são quase não-humanas.

 

Algo que Alan é capaz de respeitar.

 

A preocupação principal de Lian, que se Luthien é mais que humana, e na prática algo que as Torres de Hermetismo chamariam de “possessão”, se não era um risco revelar as gemas, e seu propósito real, à ela, mas Alan e Verner concordam que a mulher não os acostou sobre as joias mesmo provavelmente sentindo sua presença. Verner deixa bem claro que Luthien consegue absolutamente tudo que deseja, e que se ela lhes desejasse mal, eles não estariam ali, à vontade, bem debaixo de seu nariz. Pelo contrário, enquanto a mulher é severa, cruel, e dificilmente poderia ser chamada de uma boa pessoa, ele não duvida que ela siga todos os mandamentos e tradições de seu povo, e que seja uma boa Bruxa.

 

“Bom, basta de conversa. Procurarei por Luthien, para conseguir nossa passagem”, o homem adiciona, indo ao encontro de um passante Fearghal e alguns outros senhores de guerra conhecidos.

 

“...não sei o que é pior...”, comenta Rose-Marrie “...se ele só é ruim longe daqui... ou se todo mundo aqui é pior que ele...”.

 

Katherine assente.

 

***

 

Rumo ao templo, Verner cruza com outra pessoa conhecida sua, Riona, uma das Folhas do templo, curandeira e parteira. Os dois conversam por um tempo, apesar da gentil moça estar claramente consternada. Frente a questionamento a garota comenta baixo com Verner que muitos estão descontentes com a situação de Luthien ter assumido a posição de Bruxa.

 

De acordo com ela Luthien não é uma figura popular, é dura, selvagem demais, e após o governo pacífico de mais de 30 anos de Sandy ela quer instaurar novamente o sacrifício de sangue humano. De fato, os sacrifícios para a Primavera incluem um jovem caçador, uma honra sem par que para Riona é um barbarismo absurdo. Nenhuma das outras Folhas tinha chance contra Luthien, mas agora que Verner voltou, ela adiciona nas entrelinhas, já que ele era o Guardião de Sandy, talvez ele pudesse tirar a megera do poder, para que todos possam ter algum mais... sábio... como líder.

 

Verner não concorda com o sacrifício humano, e era algo que não havia no governo de Sandy afinal. Ele não divide opiniões, mas furtivamente assente para a jovem.

 

“Eu ficarei de olho.”

 

Bruxa Luthien Thammais

 

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