BL - Diário de Xeloksar 11  

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Sessão 11

Trecho do Diário de Aventuras e Desventuras de Mestre Xeloksar o Explorador, Uma Autobiografia, Vol. 9 - A Cabala Renascente, capítulo 3 - Hamask em Cinzas

Nunca imaginei que poderia existir um urro pior que o do Boquirroto Estridente1.
A Dragoa retornara, seus rugidos ecoavam pela cidade em uma mórbida cacofonia com os gritos de desespero da população.
Enquanto Lady Erika trajava sua couraça, tentávamos alojar os transeuntes em minha residência.
O horror estampado no rosto daqueles que sucumbem ao vorme pela segunda vez... torço para que os Pálidos façam o seu trabalho.

Galatéia permaneceu para trás, a muito contragosto.
Precisávamos de alguém capaz de lidar com os desabrigados, não que ela tivesse entendido isso, já que deu início às suas lamúrias... sinto muito garota, mas não temos tempo para isso.

Precisávamos chegar até as armas de cerco, nossa única possibilidade de opor-se à fera.
Esgueirando-se por entre ruelas e abrigando-se detrás de muros, uma tentativa desesperada de evitar as chamas que mesmo assim derretiam pedras como faca quente na manteiga.
Confesso que mais de um par de vezes fui salvo da morte pelo escudo de Érika, posso não concordar com suas idéias, mas dou valor aos seus ideais.

Tão aterradora quanto a visão da Dragonesa em sua mórbida luminosidade era o pátio em frente ao Sol Nascente.
O piso incandescente que parecia uma lava condensada impedia a saída da incendiada pousada, gritos eram ouvidos, a parte posterior desmoronada.
De imediato pais desesperados buscavam arremessar seus filhos para que os salvássemos, Luna providenciou uma coberta que esticada serviu porcamente como rede.
Não sei o que diabos ela e Lindriel foram fazer, mas a Qesir voltou cabisbaixa - um péssimo sinal na atual situação - dizendo que os espíritos estavam a impedindo, não poderia realizar seus encantos.

Fomos levados a uma parte parcialmente ruída da estalagem, não sei qual a intenção das damas, mas a escalada foi rápida, bons tempos de trombadinha onde um muro alto era a MAIOR de suas preocupações, hah, péssimo momento para piadas, Xelos, péssimo momento.
A fumaça me cegava, emanava tanta luz quanto as próprias chamas.
Por sorte tinha a minha máscara de gás. Nunca saia de casa sem uma, seja para combater um incêndio, seja em uma refeição orokul com crucíferos, lentilhas e ovos.

Erika ficou do lado de fora, aquela armadura deve pesar mais que eu...
Precisava tirar a fumaça de circulação, tateando os quartos encontrei outros feridos, desacordados pela densa fumaça.
O Feiticeiro deve sentir as correntes de ar, canalizando através do véu as forças da natureza, harmonizando sua essência com o... ahn, Mestre Cemita e Lindriel podem até achar banal o uso da magia como uma ferramenta, mas nem todos tem a imortalidade para dedicar-se a compreendê-la em seu âmago; se há um problema, há uma solução, dane-se se é banal, é útil e salva nos momentos necessários.

Mesmo com a máscara a fumaça se condensava enquanto passava por mim, Cassep permita que os outros salvem os aprisionados, Hamask não precisa de mais órfãos, permanecerei aqui até exaurir minha energia, darei o tempo para que Dorana e Valkar guiem seus passos.
“Foco rapaz!”, dizia Mestre Cemita, “a concentração é primordial a um feiticeiro”, não ouço gritos, só um constante crepitar da madeira, um ronronar da fumaça passando sobre mim, um êxtase, um transe... como se não estivesse ali, não há o tempo pois o mesmo não existe quando se contata o Véu.

O encantamento se dissipa, mantive o controle até meu limite, busco o estrangeiro que estava soterrado, sua esposa, deixada no corredor não está mais ali. Sua perna está quebrada, com as poucas forças que me restam tento levá-lo até a corda da parte desmoronada, mas Erika manda deixa-lo para trás, ele não sobreviverá, precisamos nos focar naqueles que ainda tem chance de viver.
Diabos.
Evitamos órfãos, lindo, mas criamos uma viúva? Onde foi parar o discurso de salvar a todos?
E o que a lança de Zuniar está fazendo com você? Não sabia que podíamos levar lembranças... devia ter me dito antes que não se importava em levarmos objetos que os donos não mais utilizarão, Zuniar também tinha um machado tribal que sempre me causou fascínio, seria muito útil para quebrar algumas portas em um prédio em chamas.

Dividimo-nos em três grupos para evitar chamar a atenção da criatura, mas devo ser tão apetitoso que ela veio pessoalmente me defumar.
Enquanto coordenava a retirada dos feridos, eu só percebi aquele sol vindo em minha direção, era belo, encantador, dizem que quando se morre não deve ir em direção à luz, mas o que fazer quando a luz vem em sua direção?

Não senti dor, senti... desconforto, não sentia meu corpo queimar, sentia exaurir minhas forças, um ambiente negro, cercado por parcas lembranças, imagens aleatórias daqueles que não pude salvar, ao menos em meu último dia pude agir como um verdadeiro herói, só espero que alguém dê continuidade às minhas obras, seria uma pena desperdiçar tal estória.
Mas não era minha hora, uma Erika embaçada perguntando sobre números me recebe de volta à realidade, por sorte nenhum daqueles que me acompanhavam se feriu, Lindriel confirmou a fuga deles. Bendito seja o Mercante.

Não estava em boas condições, mesmo com os primeiros socorros de Erika e sem sentir as queimaduras. Agora sei pelo que passou Sorano, quão terrível deve ter sido saber que sua vida se esvai sem nada sentir, Luna e Lindriel achariam essa a pior forma de se morrer, Dorana tenha misericórdia dos atingidos.

Finalmente chegamos até as muralhas. A Dragonesa não viveu tanto tempo sem motivo, é precavida, não se deixa iludir pelo poder que tem, evita as armas de cerco, e Cassep me proteja, as poucas que vi, pareciam parar antes de atingir seu ventre.
Os Cavaleiros do Corno também não estavam em seu melhor, sua Ordem fora reduzida a alguns soldados, o Alto Escalão fora dizimado, quem comandava era uma Tenente-Capitã, ou algo do gênero.

De imediato oferecemos nosso auxílio, que acredito não tenha sido levado a sério.
Escoltar alguns feridos por um elevador interno? Ou ela não deposita fé no potencial da Cabala do Fogo da Alma, ou ela perdeu as esperanças... qualquer opção é péssima.
Verdade seja dita, imaginei momentos maiores de heroísmo quando me ofereci a isso, nossos esforços são vãos, nada podemos contra uma fera dessas, não há ninguém em Hamask que possa lidar, veja, eu disse lidar, não combater, não derrotar, somente lidar, ela brinca conosco como um felino brinca com seu alimento, e ao final, quando perdeu o interesse, devora de modo despretensioso.

Talvez nossa única opção seja cobrar do Mascarado as palavras que proferira, os Pálidos seriam a esperança de Hamask, apesar de minha descrença estar potencializada ao ver como suas crias ficaram em pedaços ao primeiro toque da chama dracônica...
Contudo os Cavaleiros eram cegos pela sua missão, mesmo com o Vice-Rei morto eles ainda acreditam na figura sombria que seu regente depositava a confiança, não possibilitando a interrupção do Feiticeiro.
Ora, onde está a figura mesmo? Nem eles sabem, já pode estar a quilômetros de distancia! Eles não tem autonomia, seguem as ordens sem questionar, e principalmente, sem ponderá-las; me pergunto quantos deles percebem isso e ainda assim mantem uma vida acorrentada.
Não quero crer que não se questionaram quando tiveram de levar os virgens para se tornarem Pálidos, até onde as ordens devem ser cumpridas quando pautadas no sacrifício de inocentes?

O Templo do Solar estava barrado, a força de Erika era inútil, nem eu nem Lindriel tínhamos condições de realizar o menor encanto, mesmo Luna não conseguiu sobrepujar a estrutura do templo. Minhas ferramentas de nada serviriam com essa maldita porta dupla de dobradiças internas.
Mas quem sabe possamos aproveitar a despretensão de Erika, conheço um lugar com um material muito útil para essas situações, se é que não explodiu à primeira chama: A Casa de Armas de Beltark, a pólvora não é das melhores para explosões, mas é o que temos... e o melhor, de graça!
A tranca do estabelecimento não impunha dificuldades, ele deveria investir mais em segurança...

A pólvora não fora suficiente para explodir o portal, o estrondo que irrompeu não foi suficiente para chamar o dragão ou as autoridades, mas para permitir um pequeno buraco, farpado que dava acesso ao interior.
Erika jamais conseguiria passar por ali, Lindriel não se sujeitaria a isso, mas enquanto eu pensava nas possibilidades a esguia Luna já estava do outro lado.
A madeira fora firmemente calçada, não seria de se espantar com a força que os Pálidos tem, Luna dificilmente conseguiria removê-la, deslizei para o outro lado como nos tempos em que deslizava para os esgotos para conseguir fugir dos guardas. Bons tempos.

Não tive forças para remover a viga, mas nada que o Formão de Althoniel não pudesse resolver, pronto, uma viga a menos e um novo bastão, gostaria muito de poder identificar o que este faz, mas é sempre uma surpresa.
Retiramos a última viga, a porta não aguentou e causou um novo estrondo, é meio mórbido dizer isso, mas há uma vantagem na Dragonesa ocupar os guardas e os Cavaleiros, odiaria ter problemas com as autoridades nesse momento.
As barreiras impostas, portas trancadas, passagem por debaixo do altar, alçapão trancado, aparentemente os Sacerdotes do Pai Sol não eram tão transparentes quanto se faziam crer, ninguém com tanta proteção é livre de segredos... ou de tesouros. Cassep, espero que seja a última opção.

Finalmente, ao final do corredor e além da última porta, vemos a figura responsável pelos pálidos, cercado por pouco menos de uma dúzia deles, o Mascarado sem a máscara.
Um rosto pálido, limpo e liso, com pequenos olhos, sem orelhas, nariz ou lábio, sequer menções à existência de tais extremidades, semelhante ao estrago que queimaduras intensas deixam.
A flâmula que pendente faz menção à Tríade de Ébano, as especulações de Lindriel estavam corretas, um cultista.
O Sem-Rosto era um Qesir que fora atacado pela mesma Dragonesa, chamada de Aurora Vermelha na 1ª Era. Ela dizimou qesires, os mesmos que o Sem-Rosto amarra aos virgens... em sua vingança ele deixou tudo para trás.
Disse que a criatura é protegida por uma magia, talvez até um artefato, todos que ela devora são aprisionados em seu ventre, tornam-se energia, fortalecem-na como um combustível, isso explica o porquê dela ter um período de atividade maior que qualquer ancião, explica como ela consegue se manter após tantos ataques...
Está ciente que seus Pálidos foram ineficazes, salvou os que podia para atingir seu objetivo outro dia, não pudemos fazer nada contra a Dragonesa, nem nada contra ele.

Se por um lado a subordinação (ou honra, entendam como quiser) dos Cavaleiros do Corno impediu que fossem além das ordens, os responsáveis por esta calamidade foram de fato os Sacerdotes do Solar... jogado ao chão estava uma estatueta em formato dracônico.
Até onde a fé permite sacrifícios de inocentes? Os Sacerdotes mereceram a pena, mas um novo poder tomou o lugar, fazendo novos sacrifícios.
Até onde os sacrifícios que nós fizemos valeram a pena? A tecnologia de Raagras, o próprio, a comitiva enviada ao norte? Somos uma força a ponto de combater os males do mundo ou um grupo que acha que sabe o que faz? Não impomos respeito a nenhum dos inimigos...
Erika carrega títulos mas os feitos são devidos à um conjunto de lendas que faziam parte da primeira formação da Cabala, Isaac era uma delas. Não foi à toa que os dragões atacaram em peso sua sede, hoje a Cabala é uma sombra do que já foi, uma dúzia de pessoas contra as legiões de Ekaria e dragões.
Sozinhos não somos nada...

Só nos restava evacuar a cidade. Retornamos derrotados à Mansão, recebidos por uma ingênua Galatéia que esperava que tivéssemos chutado-bundas.
Novamente Erika diz para deixarmos os feridos para trás, Anabelle estava ferida, não deixaria seus filhos órfãos, eu a carregaria até os confins do inferno, até meus braços caírem, não deixarei mais nenhum dos meus para trás.
Demônios, eu não entendo a humana, é a primeira em nos criticar pelo que ocorrera a Raagras e nosso hábito de sacrificar a terceiros para objetivos pessoais.
Nunca desejei que o gigante fosse preso, mas ela sacrifica os meus como peças em um jogo de xadrez, e o pior, sequer permitiu que carregássemos mantimentos. Não posso acreditar que ela realmente crê que o ermo proverá sustento a tantos, os diabos nos devorariam! Ela não sabe que os malditos espreitam tais regiões desde o dia que sofreram a primeira derrota por Hamask?

A Muralha caiu, precisaríamos aproveitar o sacrifício dos Cavaleiros para levar os desabrigados, novamente dividir o grupo e torcer para que não sejamos vistos como alimento fácil, mas somos rapidamente notados, a besta nos nota e prepara para dar a baforada final, tomara que tenha uma indigestão comigo, verme.

Mas um meteoro cruza os céus, seguido de outro, não acredito nos meus olhos quando vejo um anjo descendo das nuvens.
Obrigado por ainda não me levar, Juiz.
Outros dragões parecem cruzar o céu e investir contra a Aurora, seu sopro nada faz contra os menores, outros anjos começam a descer sobre ela em um festival pirotécnico digno das maiores festividades, ela recua, mas os dragões e os anjos permanecem em seu encalço. Hamask está salva, por hora, pois sei que se ela retornou uma vez, retornará sempre.

Desce à nossa frente um Valaryn, informando que Kalenish manda lembranças.
Finalmente uma boa notícia! Maldito, poderia ter nos avisado que estava vivo! Irmãos mais novos, hah, sempre aprontando. Devo fazer uma oferenda à Dorana, ela possui uma sacerdotisa com fé maior do que aparenta. Muito bem Luna, muito bem mesmo.

Também desce à nossa frente um dragonete incandescente, o peito parecia fogo vivo. Sobre ele um qesir, hah, QESIR! Capitão Terberis, Paladino da Ordem do Dragão, nunca imaginei que os qesires integrariam tal Ordem, não sei, não casa bem, algo como misturar frutas doces e ácidas na mesma salada, meio indigesto...

A Ordem ofertou a proteção à Hamask, na ausência do Vice-Rei os Cavaleiros do Corno mantém a ordem, até o momento que Leiriturth designe o novo Vice-Rei, a mesma Leiriturth que nada fez para nos salvar.
Por óbvio os Cavaleiros recusam.
Maldição, sei que vocês sacrificariam suas vidas a qualquer momento, mas nem todos são tão altruístas, alguns só querem viver suas vidas. Está claro que não podemos contra os dragões, as crias de Ekaria sim, com baixas, mas dragões? Não está claro que não temos opção? Ou é morrer sob o fogo da Aurora Vermelha ou sob os ataques no ermo enquanto corremos com o rabo entre as pernas!

Nunca que o Duque deixaria suas pretensões de lado para tomar a dianteira, ele tem mais a ganhar permanecendo nas sombras, tão pouco pretendo pedir mais favores àquela família, já me cobram demais, ainda que tenha pago além do devido.
Nenhum outro nobre tem colhões para tomar o poder dos Cavaleiros do Corvo.
Uma turba derramaria ainda mais sangue e acabaria com a história dos primeiros homens de Hamask, eles não merecem isso, estão cegos pela sua obediência, estão presos pela sua honra, deixaram família e títulos para trás, merecem mais que isso.
Pelos seios fartos de Dorana, que os Deuses perdoem minha loucura.

Ainda que Erika reconheça a loucura e decida nos impedir, Luna concorda comigo que medidas extremas devem ser tomadas, não podemos deixar mais pessoas desamparadas, não podemos escolher quem salvar, eu decidi ficar para trás para salvar os meus e vejo o quão errado estava, cada um dos que amo possui outros tão amados quanto, pedir para que eu escolha um, é pedir para que este não escolha ninguém.
Galatéia vê sentido nisso e pede para que Erika entregue a arma, enquanto eu e Luna cuidamos dos Cavaleiros.
Que a sacerdotisa é um pedaço de mal caminho todos já sabem, mas o surpreendente é o número de contatos que ela possui, homens e mulheres nos confins das maiores cidades prontos a atender seu chamado.
Hora de colocar em prática as habilidades do bastão criado.

Foi feio, foi sujo e foi injusto, não possibilitamos oportunidade de defesa, espancamos alguns feridos até desacordarem, os seis últimos Cavaleiros do Corno não eram ameaça, por Argon, alguns até pediam isso em seus olhos.
A multidão que se aglomerava não parecia gostar do que acontecera, não posso culpa-los, talvez eu tenha espancado o último resquício de nobreza de Hamask, mas não é de nobreza que precisamos agora, precisamos é de proteção.

Talvez não tenha sido o melhor dos meus discursos, tremia por dentro feito as crianças que eram levadas à Madame Milen para uma primeira vez evitando o destino de se tornarem novos Pálidos.
Entre o abandono de nossa cidade, bem como dos feridos que não poderiam ser carregados, o retorno da Dragonesa com a morte flamejante, a reestruturação da Máfia, eu forneceria Hamask a Ordem do Dragão.
As palavras de Erika ecoavam em minha cabeça “sacrificar o bem dos outros é fácil”, o bem-maior é um conceito pessoal, a cidade estaria salva, os descontentes poderiam ter auxílio em Leiriturth, graças a um salvo-conduto de Leisteniara.
Hamask ressurgiria, sob uma Ordem, uma nova ordem, um governo que não se preocupa em interesses pessoais e sim em sua coletividade, cada um teria a capacidade de se proteger e proteger os seus.
É disso que precisamos, de um exército, não de poucos indivíduos, poucos grãos de areia em uma tempestade não faz siroco.
Sei que não sou o melhor dos homens, mas sou o que é necessário.
Meu povo precisava disso, era a única salvação, sou o Vice-Rei, sou o salvador, dei um novo futuro, tirei-lhes liberdade, sou o traidor, e que o Juiz me perdoe, faria o mesmo novamente.

1 - Criatura esguia de hábitos noturnos encontrada em Kerra, apesar da pouca força e resistência física, suas cordas vocais primitivas permitem murmúrios semelhantes à fala humana. Tal habilidade é utilizada para atrair suas vítimas dentro do alcance de seu grito sobrenatural, o qual paralisa o alvo, que é arrastado para a toca e devorado vivo.


***

Trecho dos diários de Erika, a paladina

Poucas vezes na minha vida me senti tão vazia quanto agora. Sinto frio. No peito. Na garganta.

Eu não sei como expressar o que sinto, é como estar mergulhada em agua gelada o tempo tudo, e sempre afundando. A comida não tem mais graça, o ar parece estagnado. Tudo parece mais denso, mais escuro e mais distante, mesmo que as coisas ainda continuem ali. A comida ainda e a mesma e o mundo ainda é o mesmo.

Eu me sinto caminhando no ar. Acordada em um sonho ruim, só que quando vou dormir, o sonho é pior.

Não sei porque continuo a me importar. Eu dei tudo de mim. Eu me esgotei, me drenei de tudo. E mesmo assim, no final, continuo sem entender. Eu nunca me senti tão cansada. Eu quero dormir, fechar meus olhos, deitar em um canto e dormir.

Abri mão de companheiros, de boa comida, de boa cama. Eu poderia ser uma princesa agora, dormindo no mais bonito dos quartos e com alguém a meu lado que me amasse. Eu poderia ter sido uma generala e comandar exércitos de centenas de homens. Eu poderia ter sido tanta coisa. Eu poderia ser uma diplomata, uma curandeira, uma cardeal. Se tivesse aceitado qualquer das propostas de casamento e companheirismo e, propostas de comando e de confiança, estaria longe daqui.

Pelo lobo branco, eu olho minhas roupas, meus cabelos, e tenho nojo. Olho esse escudo que carrego e tenho vergonha dele. Minha espada é tão inadequada. Como vou lutar contra dragões com ela? Eu, que já usei armaduras forjadas para reis. Que já carreguei espadas criadas para santos. Agora carrego o pior dos escudos e a mais inadequadas das espadas por um motivo que eu não consigo descrever e que parecem que em ultima instancia só importam a mim. E que não servem para nada, e não justificam nada.

Eu me privei de tantas coisas, e para que? O grande lobo me desculpe, mas o que eu ganhei? o que consegui mudar com isto tudo? Eu só tenho trabalhado para me tornar um... Um monstro. Uma coisa indesejada que as pessoas ou temem ou odeiam. Eu carreguei estas correntes e no final, elas não me ajudaram, não ajudaram ninguém. Eu não tenho o poder para deter os dragões, independente do sacrifico que faça. Jamais terei o poder para salvar a próxima Hamask, não importa de quantas coisas eu já abri a mão, de quantos dias eu devote em ajudar as pessoas.

A única coisa que eu tenho é meu nome. Eu tenho orgulho das coisas que fiz e que ajudei a fazer. É o único que segurei e que me restou. E por isto me chamam de arrogante e de presunçosa. Galatea me repetiu isso várias vezes e Luna fez questão de jogar isso na minha cara a cada oportunidade. Lindriel reiterava isto sempre.

É a ultima cosia que tenho. Meu nome. As coisas que fiz. As coisas que vi. Eu vi o outro lado do véu por tanto tempo que escolásticos se perguntam como eu ainda existo. Eu olhei nos olhos de um demônio com nome e me vi refletida neles. Eu vi deuses vivos caídos das estrelas e engolidos nas entranhas da terra. Eu vi céus sem sol e escuridão mais profunda que o ébano. Eu vi maquinas vivas rastrejado como insetos na carne dos homens e vi a luz do sol se tornando fios de luz nas mãos de santos. Eu vi coisas que não tem nome pela falta de imaginação.

Eu já vi tantas coisas que as pessoas não acreditariam. É a ultima coisa que me dei direito a carregar. E mesmo isto foi ofensivo.

Me sinto traída e desprezada, humilhada e drenada. É como se nada que tivesse feito até agora servisse de alguma coisa, e os rostos daqueles que ajudei são manchas esfumaçadas. De que me adiantou tirar as pessoas do Sol Nascente se no final o dragão iria devorá-las? De mostra-lhes que ainda estavam vivos e ainda tinha esperança, se no final das contas, a Alvorada Vermelha iria devora-los? Marduk e Zuniar se foram e nada pude fazer para ajuda-los. Novamente, amanheço o dia com menos amigos.

Queria ter a coragem para pegar minhas coisas e largar estas pessoas, este mundo, esta vida. Tentar de novo ou talvez ser esquecida em algum canto. Qualquer coisa é melhor do que estar aqui, agora. Ter que olhar para a cara de Xeloksar, de Luna e de Lindriel e não sentir nada além de frio e desprezo mútuo. Eu sou aquela... Líder... Que serve para tomar as dores, mas não serve para comandar. Quando lhes é conveniente é Erika, a Pura, a Paladina, que está no comando. Quando decido alguma coisa, eu sou injusta, quando discordo deles, eu sou surda.

Para que eles precisam de mim então? Para que eu preciso deles?

Como eu não vi isto antes? Sertrous, Shottotug, os Reis de Marfim, o Grande Corvo, o Oraculo. Nada disto serviu para alguma coisa, as historias que contam sobre mim. Só bonitas histórias. Os céus brilham e riem de mim. Eu andei sozinha, fiz coisas terríveis, vi coisas terríveis. E isto me tornou esta coisa que sou.

E esta coisa que sou é incapaz de salvar este mundo. Quão longe eu fui? Pelo Grande Lobo, o que tenho me tornado? Eu me sinto sozinha. Galatea me lembrou disto. Eu me sinto tão sozinha e vazia. Meus amigos não são verdadeiros amigos. Meus aliados não são verdadeiros aliados. Os que eram estão mortos, ou pior.

Me sinto como um pedaço de coisa velha em um mundo novo. Uma madura enferrujada ou uma espada torta. Estou com fome e estou com sono. Minhas mãos tremem sem a presença do grande lobo. Eu vivi e depois trai aquilo que me propus e por nada. Hoje sou metade do que era ontem.

Eu... Eu queria matá-los. A todos.



This entry was posted on quinta-feira, outubro 01, 2015 at 13:15 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

1 comentários

Muito interessante! Meus mais sinceros parabéns!

4 de outubro de 2015 às 16:11

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