Sessão
22
Ladrão
27, 11 4e
Diário,
Estamos faz duas semanas nesta vila, e parece que o tempo não passa. É difícil se concentrar, é difícil perceber que o mundo afora está desmoronando. Aqui, neste lugar atemporal, os qesires fazem questão de que pareça que o mundo está congelado neste precioso momento.
Não
consigo entender ainda como cheguei a este lugar. Lembro-me de cenas que não
existiram, alucinações. Lavinia me afirma constantemente que passamos por
grandes riscos e que fui influenciada pelas alucinações de uma planta venenosa
em nossas tentativas de evitar a perseguição de forças draconianas que
infestavam a região que passamos. Não sei. Está tudo confuso. Não importa,
imagino.
É
belo e calmo. Fazia muito tempo que não estava num lugar assim que esqueci como
é simplesmente apreciar a beleza.
Anos
se passaram desde que eu comecei a me aventurar. Sempre correndo, sempre
esperando o pior. Mesmo quando estava me recuperando, minhas forças estavam em
outro lugar, focadas na nova fase desta enorme aventura que eu decidi
empreitar.
Os
qesires me ajudam a cuidar dos ferimentos. Suas mãos suaves são quase
imateriais, quase como se não tocassem nada. Eu nunca as tinha percebido assim,
ou sequer parado para prestar atenção neles. Confesso que estou um pouco
envergonhada. Eu sempre fui um pouco racista com eles, mesmo que não tenho
nenhuma razão para sê-lo. Ao contrário, os qesires que encontrei sempre foram,
pelo menos, gentis. Mesmo a Lindriel.
Temos
muito tempo de pensar nas coisas que passamos nas últimas semanas. Vejo que
Helgraf aproveita a estadia, mas sua mente está sempre distante, em outro
lugar. Ele é um cavaleiro comprometido, e de uma fé firme que me faz sentir
inveja. Provavelmente pensa em sua família, sem seus filhos. Agradeço tê-lo a
meu lado, sempre prestativo.
Ele
me diz que as palavras do Sem Escamas só reafirmaram sua fé no Criador. Diz que
há algo lá fora, algo maior e mais glorioso, que olha por todos. Essa fé
preciosa nas coisas que não podemos comprovar. Lembro faz anos atrás que
Araleth me falou que a fé no criador é pautada em algo chamado Fideismo: A
iluminação no criador não pode ser entendida pela razão, somente pela fé.
Lavínia,
por outro lado, parece perturbada. Ela é menos afetada pela natureza desta ilha
no tempo, e parece que o mundo de fora ainda a perturba. Imagino que assim
seja, ao final ela está passando por uma provação que eu apenas consigo
imaginar. Ela chegou à uma resolução: aqueles momentos em que você deve decidir
o que ser e o que deixar de ser.
Ela
viu o futuro tanto quanto eu, sabe que eventualmente sua fé será a fé em Makar.
E ela sabe, mesmo que não admita, que ela tem uma participação nisso. Makar era
temido, acusado de espalhar a medonha licantropia como se fosse uma benção e
uma maldição. Mas nos só vimos os que os homens de Taurida sabiam.
E
o destino não está escrito.
Em
todo caso, ela não tem rumo agora, a não ser me seguir. Sei disso. Ela está
como eu estava antes: solitária, sem ninguém para retornar nem ninguém por quem
lutar. Você luta e segue porque é a coisa digna a se fazer, a moral obriga, o
bom senso também. Mas eu sei que isso não é o suficiente.
Espero
que ela encontre seu caminho. Certamente não é com a Ordem do Dragão, apesar de
eu já ter oferecido a ela um porto seguro em Hamask. Eu não sei o que espera, o
que deseja, e ela não fala disso. Sempre agressiva, nem mesmo ela parece saber,
e muito menos parece disposta a passar esta sabedoria a outros, se a tivesse.
Este
tempo tem me ajudado bastante a pensar nas coisas que fiz, nas coisas que tenho
e que faço.
Lamento
muito, muito a morte de Annika. Ela era minha amiga, a conheci em tempos
distantes, na guerra em uma terra estrangeira contra coisas que não são deste
mundo. Olhando para trás, parece que eu era mais naquele tempo. Maior, ou pelo
menos fazia mais diferença. E mesmo com a morte do príncipe de Silverar, ela me
seguiu. Até a morte.
Sentirei
enorme falta dela e de seu humor. Não devia ter permitido que ela fosse ao
fronte.
Por
Volksar, eu confesso que sinto menos empatia. Eu lamento sua morte, claro. Era
um homem espetacular e os segredos que mantinha baixo as chaves de sua distância
deviam ser profundos e temíveis. Mas ele não era meu amigo. Ele era parte da
cabala, somente. E lamento sua morte por isso. Somente por isso, acho.
E
a cabala morreu, ao final. Sobrei só eu de pé. Parece que faz tantos anos que
cheguei até izack e como nos dois criamos a primeira cabala. Posso me lembrar
dos rostos, cada um deles. Agora a maioria está morto. E só eu continuo no proposito
original.
Não
posso mais chorar pelos mortos.
**
Ladrão
28, 11 4e
Diário,
Hoje
solicitei à representante da Lagoa de Ouro uma entrevista com o mestre Ilidion.
Eu expliquei a ela a situação de porque fazia este pedido e ela entendeu.
Mestre
Ilidion era o criador da Mirani, e foi me explicado que ele anos atrás fora
capturado por Alaranis, e ficara muito tempo preso, até ser eventualmente
libertado. Ele era um mago de não pouco poder e famoso pelos seus estudos com
familiares.
Nos,
estrangeiros, não somos bem vindos além destas terras, deste porto. As terras
da Lagoa de Ouro são de qesires e somente para eles. Terei que esperar a
audiência neste lugar.
Tudo
bem. Sinto um certo frio na barriga agora que posso encontrar Mirani. Não sei o
que esperar.
**
Viajante
2, 11 4e
Diário,
Sinto
um nó na garganta terrível. Me sinto... decepcionada. Não triste, algo mais
perto de esgotada. Parece que os anos caíram sobre mim hoje.
Mirani
está viva, e está bem. E por isso fico feliz.
Mas
não é... minha Mirani. Talvez seja a mesma, mas ela não tem memorias sobre mim,
nem sobre a Eliza, a Cibele, a Raquel, nem sobre o Julian.
Ela
fora destruída em certo momento. Pouco interessa agora por quem. Mas seu mestre
a reconstruíra. A recriara, ao final, ela era um familiar. E isso.
Somente
um familiar. Talvez um familiar com vontade própria, um familiar com forma
humanoide, com desejos próprios e experiências próprias, mas em última
instancia, somente isto.
Ela
está bem. Ela não sofreu. E fico feliz por isto, mas também decepcionada. Por
muito tempo eu procurei saber o que acontecera com ela. Esperava algum resgate,
esperava uma resposta ruim. Tinha a expectativa de tanta coisa mas não do mais
simples: Ela vive, e está bem.
Sei
que pode parecer egoísta e besta, mas acho que isto foi pior para mim que saber
que ela estava destruída.
Ela
não só estava viva e bem, como tinha esquecido aquilo que passamos juntos. Ela,
mesmo sendo um familiar, vivera. Eu não. Eu menos que ela.
Sinto
minha garganta retorcida, um mal gosto de uma história mal acabada. Para mim.
Quer
dizer que tantos anos me preocupando por ela, tantos anos procurando
conhecimento e sabedoria sobre alguém que eu achava que tinha sido esquecida
foram em vão? Todo meu esforço e toda a minha angustia transforados em pó.
**
Viajante
5, 11 4e
Diário,
O
navio por fim chegou. Uma lancha de rio larga, com diversos marujos e
mercenários, capitaneados por um Urdur chamado Idogar.
Viajaremos
com eles até Dam Dorahl, e de lá, um dia para as terras da ordem do dragão.
Quero
sair destas terras logo. Me afastar deste meio atemporal e da ideia de que o
tempo que perdi não voltará. Não há o que fazer. Somente seguir em frente. E
isso não posso fazer aqui.
**
Viajante
8, 11 4e
Diário,
A
viagem é silenciosa e lenta. Tensa também. Os navegantes nos contaram histórias
terríveis sobre os corrompidos e os draconatos que espreitam no lugar, lutando
uma guerra de escaramuças com uma dezena de cruzadas religiosas que se
dispuseram a salvar as pessoas.
Ontem
à noite Helgraf contou uma história para nós: Com o intuito de romper o clima
pesado, os homens da tripulação começaram a contar histórias das conquistas
amorosas que tiveram. Quando foi a vez de Helgraf, ele contou sua história:
Ele
fora casado com uma thaar nobre, e com ela teve um filho. Ele muito a amara,
mas a perdera, vítima de uma fatalidade. Quem tomou conta dele e de seu filho
foi a nora, que, vinda de uma família nobre, não poderia abandonar o sobrinho
nem ele.
Ele
afirmara que mesmo com a memória do amor de sua esposa, ele não conseguiu
evitar se aproximar da nora. Sendo um homem de fé, ele sentiu-se constrangido
por este amor que estava surgindo entre eles, já que um relacionamento com ela
seria uma traição à memória da tão amada esposa.
Ela,
todavia, é uma devota de Dheia, e lhe convenceu que nada tinha de errado: A sua
irmã iria lhe desejar ser feliz. Ele entendeu que, como Dheia é uma faceta do
Criador, não haveria porque ter vergonha deste amor que surgira entre eles. E
ele assim o assumiu, e deles, nasceu seu segundo filho.
Os
homens escutam atentamente. Alguns deles inclusive fazendo uma leve chacota ao
cavaleiro: Escondendo sua vontade com desculpas religiosas. Ele fica
constrangido, mas acompanha a risada.
Os
homens contaram histórias de conquistas amorosas. Ele contou uma história de
como o amor o conquistou. Helgraf é um homem admirável.
**
Viajante
10, 11 4e
Diário,
Ontem
aconteceu algo bem interessante: Quando navegávamos, um navio se acostou ao
nosso, um navio de guerra pintado de cor de rosa e dourado, e pilotado por
guerreiros belos, todos humanos. Era um navio dos Cavaleiros Galantes de Dheia.
O
navio se acostou ao nosso por motivos pacíficos, procurando comerciar e um
lugar seguro, nos números, para passar a noite.
A
capitã era uma moça muito bonita, de cabelos azuis bem bonitos e olhos
brilhantes, chamada Arlene. Ela era uma cavaleira galante, e viajava em cruzada
sagrada para ajudar os povos que estavam sendo vítimas de corrompidos e
draconatos que infestavam a região.
A
igreja de Dheia não nutre muito amor pela ordem do dragão. Eles não concordam
com a aproximação de exigir lealdade em troca de proteção. Eu confesso que
também não, mas ainda não tenho o poder de mudar isto. Eu deixo claro à capitã
que a ordem do dragão faz coisas boas, e que estou tentando mudar este tipo de
atitude.
Ela
parece acreditar, ou finge. Em todo caso, os cavaleiros galantes preferem
evitar os conflitos e deixar a política de lado nesta noite.
Conversamos
longamente durante a noite, e a capitã Arlene é encantadora. Ela conta que seu
avó era um meio alarani, e por isso tinha o cabelo de um azul esbranquiçado,
que ela tingia para realçar a cor.
Ela
me confessa que a ideia é exatamente provocar as pessoas a perguntarem sobre
isso. Ela parece também interessada em Lavínia, que mostra-se bem menos a
vontade com sua descendência alarani, apesar de insistirmos que ela era bonita.
Enfim,
foi uma noite bem agradável, devo confessar. Não estou acostumada a beber, mas
bebi da mesma forma.
A
capitã me convidou a passar a noite na cabine dela. Lavínia foi em meu lugar.
Não
é a primeira vez que uma moça me convida a algo parecido. Mas desta vez eu juro
que ia aceitar. Queria ver. Queria testar, provar. Estou cansada destas
correntes que forjei para mim. Ela era linda e confesso que me senti atraída
por ela.
Não
sou mais virgem, inclusive estou gravida. Eu sei que minha... aquela vez... com
o Urian, não foi exatamente como sexo deveria ser. Eu sei que é algo bom, e
quero sentir isto. Não tenho porque me sentir envergonhada, não mais.
Da
próxima vez, vou aceitar. Agora, fico aqui, bebendo. Já é um começo.
Tintas de cabelo não são inexistentes em Alancia, mas as cores mais "sobrenaturais" como as da capitã tendem a ser bem óbvias e chamar muita atenção; o que nesse caso era a intenção dela. |
**
Viajante
16, 11 4e
Diário,
Chegamos
hoje de manhã a Dam Dorahl. É uma cidade urdur, um entreposto comercial. A
arquitetura geométrica deles é caraterística, apesar da cidade ter bastantes
humanos, alaranis e thaars.
O
local estava em péssimo estado porém. Nos é informado que um grande grupo de
corrompidos tinha atacado a cidade, mas tinham sido rechaçados. Todavia, devido
ao aumento da atividade dos corrompidos, muitas pessoas tinham abandonado a
cidade, a deixado em um clima de decadência óbvia.
Um
grupo de devotos do Cavaleiro vieram até mim. O urdur me pediu explicações:
porque estava agindo contra a nossa fé ao me aliar aos inimigos. Ele diz que o Cavaleiro
abomina os métodos da ordem do dragão, todos devem ser protegidos, não somente
aqueles que se curvam.
Eu
expliquei a ele que o que estava fazendo nada tinha contra os mandados do
cavaleiro. Ele não quis saber, e, sem nenhum julgamento, me excomungou. Ali
mesmo.
Eu
não aceitei a autoridade dele. Quem era este urdur para me julgar? Como ele se
atrevia a dizer que eu não me devotei ao grande lobo?
Mas
a verdade é que ele tem razão. Não pelos motivos que ele acha.
Eu
olho para este símbolo do lobo branco e não sinto mais o reconforto que sentia
antes. Eu penso nos ditames da fé e vejo como eles me amarraram, como me
estrangularam durante tanto tempo.
Confesso
que sempre me senti abandonada pela fé, nunca houve muitos sacerdotes do
cavaleiro, e menos do lobo branco. A grande maioria morreu pelas chuvas, e
mesmo uma década depois, ainda éramos poucos.
As
congregações que sobraram ainda foram as que menos concordava: devotados a
firmarem-se em suas abadias.
Mas
isso talvez não seja sincero.
O
sincero é que eu não acredito mais no lobo branco. O Sem Escamas me falou que
deuses não existem, que são somente espíritos caprichosos.
Eu
dediquei grande parte da minha vida em prol de algo que acreditava ser maior
que eu, algo que poderia salvaguardar em minha missão. Algo pelo que me dedicar.
O Lobo Branco devia proteger a matilha, devia me salvar do inverno atroz. Mas
tudo o que consegui foi um rastro de corpos de amigos e companheiros, de ter
minhas mãos cobertas de sangue. De ter me ferido, sangrado e sofrido, de
agonizado e suportado dores terríveis. Não. O Lobo Branco nunca me protegeu do
inverno atroz.
Eu
vivi dentro deste inverno, me agarrando por tanto tempo a conceitos que nada
significam. Aceitei sofrer, passar forme e humilhação pelo que?
Eu
ainda acredito que os ideais são bons: Uma vida dedicada a salvar pessoas,
lutar contra a vilania e contra o sofrimento dos inocentes. Isto é algo pelo
que se vale a pena viver e morrer. Eu continuarei a me guiar por este ideal.
Mas
não há deuses. Este símbolo não significa nada, a não ser um chamariz para um
espirito velho e caprichoso que decide a seu bel prazer se irá ajudar ou não.
Não
vou mais viver sob as asas sem lei da doutrina. Se for seguir um código, se for
me comportar de uma forma ou outra, será porque é a coisa certa a fazer, não
porque o códice sagrado assim o diz.
Que
me excomunguem, que o façam mil vezes. Eu sei a verdade e agora sou mais livre
e muito mais honesta que estes pretensiosos homens de fé.
**
Viajante
18, 11 4e
Diário,
Estamos
a caminho da ordem do dragão. Estou a caminho de casa. Acho que pela primeira
vez na minha vida posso falar isto.
Estou
contenta. Apesar de tudo, estou feliz. Me sinto mais leve e mais segura.
Sei
que Hamask estará lá para mim em alguns dias. Sei que Urian estará lá para me
receber. Sei disso. E isso é o suficiente.
Gostem
as pessoas ou não, eu fiz minha escolha. Certa ou errada, eu não me arrependo
dela.
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on domingo, fevereiro 28, 2016
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